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Superfícies Não Orientáveis no Centro Cultural Vila Flor

Imagine que virar à esquerda não significa não ir para a direita, e que, subitamente, não é porque se veio de baixo que se vai sair em cima. Um conceito matemático que reflete o paradoxo fundamental, onde a linha do tempo e as dimensões do espaço não constrõem a realidade – e muito menos a orientam. Uma superfície não orientável, conceito homónimo à exposição patente até o dia 27 de abril no Palácio Vila Flor, em Guimarães, versa sobre a falta de consistência das noções de orientação tradicionais, criando um terreno fértil para inovações conceptuais. Com o intuito de nos mantermos neste sentido, vamos edificar a narrativa que constitui esta exposição a partir de momentos-chave, não necessariamente dispostos em ordem sequencial, mas numa lógica de relatos que se interseccionam, assim como as nossas memórias, ou como o fluxo do jazz.

Na perpendicular

Iniciado sob a responsabilidade do produtor cultural Pedro Silva, o Guimarães Project Room tem como propósito conhecer, mapear e apresentar os criadores de artes plásticas, visuais e novos media que possuam alguma relação de nascimento, trabalho ou academia com a cidade de Guimarães. A materialização deste projeto visa preencher a lacuna existente na compreensão do cenário da arte contemporânea vimarense. A intenção é unir duas dimensões: o seu meio artístico e um espaço que lhe proporcione visibilidade. Ao juntar ambos, é produzido desde 2021 um mapeamento da criação contemporânea da cidade.

O preâmbulo

Quando uma faixa tem as suas extremidades interligadas, forma-se a estrutura de um cilindro que paira sem aberturas, revelando um lado interior e outro exterior que nunca se cruzarão. No entanto, se essa mesma faixa for torcida numa meia volta antes de unir as suas pontas, a figura geométrica cilíndrica deixa de existir, transformando-se assim na Faixa de Moebius, uma forma que aparenta possuir dois lados – à semelhança do cilindro –, mas que apresenta apenas uma borda sem início ou fim. Forma-se, assim, uma superfície não orientável.

Um prelúdio

Envolvidos numa investigação artística contínua no concelho do Fundão em 2022, Diogo Martins e João Melo concentraram-se na herança mineira da Beira Baixa, explorando o conceito de extrativismo, originalmente ligado à extração de recursos minerais, e que hoje em dia engloba também outras práticas, como a prospeção de dados (data mining). Utilizando escultura, assim como registos audiovisuais e fotogramétricos dos espaços arquitetónicos de um conjunto de minas, Martins e Melo construíram uma narrativa fictícia e especulativa destinada a capturar a geologia digital que molda a nossa identidade e livre arbítrio.

A superfície cria uma janela

A lógica da identidade, amplamente explorada por Mariana Maria Rocha, revela-se de maneira distinta na sua ligação com os contextos tempo e memória, mais concretamente, a identidade e a noção de exúvia e as suas relações com o fragmento, o medo do esquecimento e a presença ausente.

Caminho permeável

A Faixa de Moebius pode ser utilizada enquanto uma metáfora para a construção do sujeito em relação ao mundo circundante, uma vez que, pela sua superfície infinda, a identidade deambula entre o seu interior e seu exterior, sem que haja um sítio determinado para a sua formação.

A Fagulha

No início de 2023, o projeto foi concebido quando Ivo Martins e o Centro Cultural Vila Flor (CCVF) propuseram um desafio a três artistas emergentes – Diogo Martins, João Melo e Mariana Maia Rocha – para criarem conjuntamente uma exposição colaborativa, a ser incluída na programação do Palácio Vila Flor, em Guimarães.

O Entroncamento

À medida que o projeto avançava, surgiu a oportunidade de combinar dois projetos curatoriais num único espaço, o que resultou no convite ao Guimarães Project Room para se juntar ao CCVF na coprodução da exposição. Esse encontro permitiu a colaboração dos artistas Diogo Martins, João Melo e Mariana Maia Rocha com Igor Gonçalves, primeiro numa residência, que culminou em Superfícies Não Orientáveis.

Os Interstícios

As intervenções concebidas por Igor Gonçalves têm como base o princípio da indiferenciação de fronteiras. Inspirado pelo diálogo entre luz e sombra, Gonçalves os mobiliza como protagonistas de uma narrativa visual. A desconstrução dicotômica não é, assim, apenas um conceito teórico, mas um princípio que permeia cada aspeto de sua prática artística. As suas obras desafiam noções arraigadas de oposição, explorando os limites entre o intrínseco e o extrínseco, o opaco e o transparente, o privado e o público, o físico e o simbólico. É neste espaço liminar, onde as fronteiras se dissolvem, que surgem novas possibilidades.

O Palácio

O Palácio Vila Flor, um edifício do século XVIII, deu origem ao Centro Cultural Vila Flor, um espaço proeminente no panorama cultural nacional, inaugurado em 2005, que possibilitou a integração de Guimarães nos itinerários culturais do país. Dentro do Palácio Vila Flor, encontram-se as salas expositivas deste Centro Cultural, ocupando uma área de cerca de 1000 m2, onde exposições de artistas contemporâneos são regularmente apresentadas.

A dinâmica

No primeiro piso da exposição, Diogo Martins e João Melo apresentam uma série de obras, muitas delas produzidas em colaboração. No primeiro espaço, destaca-se um conjunto pintura e escultura, onde a cerâmica se funde com elementos inesperados, como dispositivos mecânicos, eletrónicos e audiovisuais. Estas peças assumem uma dimensão metamórfica na sua relação com identidade, evolução e resistência. Em seguida, encontramos a instalação multimédia Undercurrents, que reflete sobre a natureza do extrativismo nos tempos modernos, estabelecendo um paralelo entre diversas mercadorias e processos de extração, desde a exploração de recursos minerais até à prospeção de dados no mundo digital.
No primeiro espaço, destaca-se um conjunto, onde a cerâmica se funde com elementos inesperados, como dispositivos mecânicos, eletrónicos e audiovisuais.

Ruínas Vivas

Mariana Maia Rocha utiliza da técnica frottage como processo de desenho em obras realizadas na residência do projeto, em referência específica e direta aos muros da cidade, enfatizando a ideia de toque e contacto direto entre o corpo do artista e as superfícies. Destaco especialmente a peça Exoesqueleto e a Corporalidade do Toque (2023-2024), que incorpora luzes LED e desenhos de frottage inspirados nas roupas da avó da artista – uma forma de testemunhar a presença ausente através das suas vestimentas. Maia Rocha também explora a noção de exúvia e ecdise, processos da ciência onde os animais mudam de pele, deixando para trás uma pele anterior como se de um rasto se tratasse: em Pós-animal e Pós-Industrial I, II, III (2024), o couro (de um antigo curtume vimarense) existe como a pele de um animal que agora é vestida por outro animal. Os furos no couro também simulam balas e tiros, ao mesmo tempo que constrõem orifícios onde podemos espreitar o outro.

Contaminações

A obra de Gonçalves tem caráter exo, mas ainda intro. Percebe, através das texturas e das externalizações do papel face ao ambiente, a cavidade mais profunda do existente. Cria com outras peles, em estratificações ao infinito, o encontro com o entreposto. “Cada obra é um testemunho tangível da passagem do tempo, onde as marcas do desgaste orgânico se entrelaçam com a matéria. Igor Gonçalves trabalha num continuum fluído, sem ponto de partida ou destino final definidos.” Além das suas obras expostas nas salas, ainda cria um Pulso, presente no segundo piso, que determina o ritmo e a perceção do espetador, contaminando-o em interesse.

Palacete

No Palacete, apresenta-se uma exposição que surge em paralelo com o que é exposto no Palácio, acerca dos processos que possibilitaram esta mesma exposição.

Oito Mãos

Assim como houve quatro artistas, quatro curadores puseram-se a trabalhar para que este esta exposição surgisse num terreno conceptual tão fértil. Irene Pedras, Ivo Martins, Marta Mestre e Pedro Silva destacam na folha de sala da exposição a importância da experimentação, possibilitada pela residência que antecedeu às montagens, e que é refletida no seu próprio percurso: “a exposição adota, assim, uma arquitetura maleável, fugidia e contraintuitiva, como base para desarmar e desbravar caminhos, encadeando ações, ideias, sensações e memórias”.
Para Ivo Martins, “esta exploração de contrários obriga-nos a pensar que estamos sempre a voltar a um começo; não necessariamente o dos assuntos tratados, mas o das coisas que hão de vir”.

Superfícies Não Orientáveis está patente até o dia 27 de abril no Palácio Vila Flor.

Maria Eduarda Wendhausen (Rio de Janeiro, 2000). Licenciada em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é aluna do mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte pela mesma instituição. Estudou também na Sotheby's Institute of Art no curso Writing for the Art World, From Idea to Submission. Atua como escritora e curadora na cidade de Lisboa, Portugal. Colaborou com o Manicómio no espaço de exposições Pavilhão31 e com a Carpe Diem Arte e Pesquisa. A sua última atuação como curadora, realizou-se na ARCOLisboa2022 com a exposição CRACK THE EGG do Prémio Arte Jovem Millennium bcp, em 2022. Em 2023, começou a colaborar com a CentralC como content manager. Escreve regularmente para revistas científicas e especializadas como freelancer no ramo da crítica da arte, assim como features e ensaios académicos, com o intuito de divulgar e promover para o público geral, as múltiplas facetas dos estudos artísticos e os seus desdobramentos na vida quotidiana.

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