Body, remember not only how much you were loved
A Appleton acolhe, até dia 6 de abril, duas exposições aparentemente distintas, mas que parecem partir de um mesmo lugar: o passado[1]. É lhes comum a disposição à sua revisitação por meio da memória – histórica e/ou afetiva – que se traduz em diferentes narrativas. É invocada uma tomada de consciência através de corpos, corpos em confronto, abraçados, deitados, esculpidos, projetados. Corpos.
Vasco Araújo, Catarina Mourão e Catarina Câmara Pereira são, nestas exposições, contadores de histórias. Os diferentes dispositivos instalativos denotam a sua habilidade em narrar mitos ou contar histórias que têm a capacidade de despertar para uma compreensão mais aprofundada da nossa identidade pessoal e coletiva. É a revisitação do passado que permite a exploração de outras possíveis perspetivas sobre o modo como experienciamos o mundo – e é precisamente através da identificação de padrões recorrentes do comportamento humano, dos sistemas sociais implantados (assentes e consequentes de imagens, contos e histórias que se difundem), que aprendemos sobre quem somos. Esta sugestão de revisitação transversal às duas exposições é acompanhada por um questionamento da moralidade (e da sua ambiguidade), de lições sobre o bem e o mal, de poder e identidade.
Mas falemos de uma e depois de outra. No primeiro piso, Vasco Araújo parece sugerir que tratemos, desde logo, aquele que é um dos temas basilares na sua produção artística: a desconstrução e reconstrução de códigos comportamentais. São mais de vinte grupos escultóricos, compostos por duas ou três figuras, assentes sobre tripés metálicos, que encenam diferentes episódios mitológicos da Antiguidade Clássica. Em disputa, afrontadas, contorcidas, em luta entre si, surgem como que uma espécie de catálogo dos comportamentos primordiais, das histórias do início dos tempos que toldam a forma como percecionamos o sujeito e o sujeito no mundo.
O título da exposição, Eros e Thanatos, remete-nos diretamente para a mitologia. Tratam-se de duas figuras, dois arquétipos ou princípios opostos da vida humana. Eros é visto como o deus das pulsões do desejo, da paixão e da criação; Thanatos, o deus da morte e do destino. Representativo da força natural e necessária, é implacável e inevitável. É o destino final de todas as coisas vivas.
Vasco Araújo terá partido da conceptualização do poder destas duas figuras na psicanálise de Sigmund Freud, que defendeu que o instinto de morte existe em todos, mas é amplamente controlado e moderado pelo instinto de vida, sendo a convivência destes dois instintos, destas duas forças, responsável por muitos dos comportamentos humanos, influenciando as nossas escolhas, ditando o nosso comportamento ao longo dos tempos. Eros e Thanatos são, juntos, o que nos move. É desta relação conflituosa, representada nas esculturas de Vasco Araújo, que somos chamados a refletir, de forma crítica, as nossas ações, a violência, o amor, a desigualdade e as questões de género, identidade e sexualidade. Tal como na exposição de Catarina Mourão e Catarina Câmara Pereira, são convocadas uma série de emoções psicológicas complexas, contraditórias e conflituosas por meio visual – mas já lá iremos.
Há, com certeza, na História, certos momentos ou episódios que podemos notar – e que devemos apontar –, neste ou naquele sistema, que são derivados de condições específicas, políticas, sociais, económicas e culturais. “Certas proposições erradas são devidas a um conhecimento não suficientemente adiantado, ou à influência de certos preconceitos de que mesmo o maior espírito não pode libertar-se totalmente”[2]. Nesta exposição, Vasco Araújo, parece procurar relembrar-nos a relevância do exercício de reconhecer e, de alguma forma, reviver, as histórias que fazem parte da História. Para que, posteriormente, através de um perscrutar de temas que se baseiam em conceitos ou pré-conceitos continuadamente narrados, possamos reconstruir os códigos comportamentais, elegendo novas alternativas, novas considerações na complexidade das relações humanas e numa possível reconstrução da realidade. A reavaliação de narrativas dominantes, que são lidas em perspetivas particulares ou enviesadas, é fundamental para que se considerem novos pontos de partida, novas evidências que nos levem a reconsiderar as nossas próprias suposições, de forma a promover uma compreensão mais inclusiva e, até, honesta de nós próprios.
A performance dos corpos é, como disse anteriormente, o fio condutor destas narrativas. Vasco Araújo apresenta-as através de um dispositivo associado à tradição escultórica do século XVII, recorrendo a uma memória histórica, e Catarina Mourão, por outro lado, “utiliza o cinema como forma de materialização da mesma mas, neste caso, afectiva, com toda a sua subjectividade pessoal e sensorial”[3]. A memória que dá o mote à história criada por Catarina Mourão parte de testemunhos, de lembranças associadas a um lugar, a sensações, a uma época e aura específica.
A investigação de imagens de arquivo (filmes profissionais, filmes amadores e de família) resulta no dispositivo narrativo presente no piso inferior. Para-ficcional e meta-cinematográfico, vai ensaiando possíveis histórias à volta da figura “Homem do Apito”, personagem que vagueava pelas praias portuguesas durante o Estado Novo. Uma figura quase-mística de barbas brancas e fato preto que, com o seu apito, atraia ou afugentava crianças.
The hissing of summer sands trata-se de uma construção de um retrato ficcional – ou não – deste personagem misterioso, que acaba por ser, também, um retrato da sociedade naquele contexto. A praia é o cenário que se estende para a sala expositiva. Sentamo-nos lado a lado com o Homem deitado com cão (2024) ou com os Amantes (2024), esculturas à escala real, em papier mâché e ferro, que Catarina Câmara Pereira dispõe no espaço. Figuras que, com uma aparente apatia e indiferença, contrastam com as emoções que experienciamos durante os 15 minutos de filme.
Para além de tratar da descoberta do amor, da subjugação, do afeto e da sexualidade no contexto de Portugal durante aqueles anos, cria, também, uma sensação de desconforto resultante de uma aparente aceitação e inércia perante o aliciamento de crianças, de um anúncio publicitário que convida a um passeio na praia para ver “lindas mulheres de harmoniosas anatomias”, reduzindo-as à condição de objeto e de testemunhos como “shhhhhhhh I wanted to scream and run away. But I didn’t”.
Tal como na exposição de Vasco Araújo, é acionada uma disposição para pensar as normas sociais, a posição psicológica e social do indivíduo na sociedade, questionando noções de certo e errado, de moralidade e impulsos. Com uma inquestionável qualidade poética, as duas exposições abordam o afeto, o desejo, mas também o medo, o confronto, a fragilidade – do sujeito e do sistema – e a relação entre identidade e poder, com toda a carga dramática que advém dos gestos das figuras e dos testemunhos de um passado não tão longínquo.
Eros e Thanatos, de Vasco Araújo, e the hissing of summer sands, de Catarina Câmara Pereira e Catarina Mourão, podem ser visitadas até dia 6 de abril de 2024, na Appleton.
[1] O título deste artigo é um verso do poema Body, Remember… de Konstantinos Kavafis, presente no livro disponível na exposição.
[2] ALLERS, Rudolf. (1946). Freud – Estudo Crítico da Psicanálise. Livraria Tavares Martins, p. 287.
[3] Excerto do texto da CINEPT sobre o filme The hissing of summer sands.