Memórias da Democracia
No ano em que se completam 60 anos do golpe cívico-militar, o Brasil encara as consequências da invasão golpista às sedes dos três poderes e à exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia, à época em cartaz no Museu da República, em Brasília.
No senso-comum, ser artista é ser algo peculiar, especial e sobre-humano/a. Há, naturalmente, uma projeção só possível de ser realizada porque tomada pelas questões que envolvem o Belo e sustentada pelas diversas “fontes de distância” que existem entre artistas e público. Embora muitas noções tenham sido tensionadas ao longo da modernidade e tais tentativas atravessem a contemporaneidade, não podemos ignorar que historicamente o espetacular e todas as suas tecnologias persistem vitoriosas e eficientes no que tange encantar/dominar o público ao distanciá-lo dos/as artistas e até mesmo da Arte. Cabe-nos pontuar que tal distância parece cláusula pétrea dessa relação, de forma que o senso comum não está em absoluto equivocado. Aliás, segundo Fernando de Azevedo, o primeiro “sistema de ensino” do que se convencionou chamar de Brasil, o sistema jesuítico, que praticou por mais de dois séculos epistemicídio, não fez mais do que “acentuar, com a distância entre a elite intelectual e a massa, o horror ao trabalho manual e mecânico”. Quer dizer, está no cerne do nosso atraso e violência, o desdobramento dessa lógica de cisão, “esquize”, separação entre o mundo material e o espetáculo do Belo do qual artistas são operários, embora nem sempre se vejam como tal. Dessa distância entre arte, pensamento e massa, povo, braço, decorrem deleites e desgraças. Sobretudo porque alguns temas de grande relevância para a sociedade quando manifestados por artistas adquirem o rótulo pejorativo de “coisa de artista”. Ou seja, coisa de gente especial distante de nós e de toda a realidade palpável. Em grande parte, esse foi o caráter assumido pela discussão acerca da democracia no Brasil. O que ela significa na vida cotidiana, real, pobre? No que se refere à ditadura e/ou à invasão das sedes dos três poderes da República, como nos vemos enquanto nação? Como temos comunicado a necessidade de preservar a democracia?
Em entrevista recente ao My News sobre a luta pela anistia na ditadura brasileira (1964-1985), Ana Müller, advogada, fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ e fundadora do Partido dos Trabalhadores/RJ, aponta que “a questão da memória, como a gente vê no Chile, como a gente observa na Argentina, cria realmente uma cidadania e um apego à memória (…). Aqui no Brasil, todas as tentativas, todas, de respeito e resgate à memória, na verdade, são tentadas a apagar por essa sociedade elitista mantida pelos militares no sentido de se perceberem com total impunidade. Por exemplo, tivemos ‘recentemente’, um monumento erguido no Clube de Regatas do Flamengo ao desaparecido político Stuart Edgard Angel Jones. Foi feito um ato belíssimo ainda no governo Dilma (2011-2016). Ali foi feito um monumento porque o Stuart, além de ser um militante político, ele foi campeão de remo pelo Flamengo várias vezes. Vimos pessoas ligadas a ele no remo, pessoas que não participavam de política, ali emocionadas. Esse monumento não existe mais, foi derrubado (…). É um trabalho cotidiano de impedir essa memória. A troco de que? Não querem fortalecer a democracia”. Observando a política internacional, percebemos que discutir a memória não é urgente apenas no Brasil. Na Alemanha, por exemplo, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) se apresenta como favorito nas eleições deste ano, mesmo que, segundo o chefe da Agência de Inteligência da Alemanha, tal partido represente uma ameaça à democracia devido às referências anti-islâmicas e racistas. Seu líder rejeita a “erinnerungskultur”, a cultura oficial alemã que busca lembrar do genocídio nazista. Sobre a erinnerungskultur, afirmou: “essa política estúpida ainda está nos paralisando até hoje. Precisamos dar uma guinada de 180 graus nessa política da memória”, aponta a reportagem da DW. Assim temos uma comprovação nítida do esforço contra a memória denunciado por Müller, também em escala internacional.
Nascido em Salvador, Bahia, em 11 de janeiro de 1945, Stuart Edgard Angel Jones foi um estudante de economia, membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), através do qual participou da luta armada contra a ditadura militar, tendo possivelmente colaborado em um dos maiores feitos da MR-8: o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, através do qual foi negociada a libertação de 15 presos políticos, que seriam exilados no exterior, e a divulgação de um manifesto na mídia contra a ditadura. Stuart foi preso, torturado, assassinado pelas forças policiais e armadas durante a ditadura brasileira. Sua mãe, Zuzu Angel, foi uma famosa estilista que acionou diversos contatos, inclusive internacionais, com a finalidade de denunciar a ditadura e punir os militares pelos crimes perpetrados contra seu filho, bem como por outros presos políticos. Zuzu morreu no ano de 1976 em um acidente de carro orquestrado pelos militares assassinos. Sobre a sua infinita busca e dolorosa trajetória, foi feito, em 2006, o filme que leva seu nome, dirigido por Sérgio Rezende. As injustiças sofridas pela família Angel Jones também permanecem na memória através da canção Angélica (1981), do magnânimo compositor, escritor, pensador e cantor brasileiro Chico Buarque de Holanda em parceria com o notável Miltinho. Segundo a Revista Fórum, a canção foi regravada e deverá ser relançada em um novo álbum em breve. E esse é um ponto que chama a atenção: quais vítimas da ditadura tiveram meios para driblar os apagamentos e apresentar sua própria narrativa dos fatos? Digo, por várias razões, sobretudo de cunho econômico, nós temos uma construção da memória sobre a ditadura muito fragmentada.
Em conversa com Irene Loewenstein, a educadora, pensadora e militante carioca aponta para o fato de que só recentemente foram tomadas iniciativas como o site Apoio ao Educador – Memorias da Ditadura, que traz sequências didáticas temáticas, com abordagem atualizada e adaptáveis a qualquer contexto educacional com metodologias variadas e com tópicos que tratam da comunidade indígena, dos movimentos negros, dos trabalhadores, comunidade LGBTQIAPN+ e suas formas de resistir à ditadura. Podemos, a partir dessas diferentes perspectivas e histórias, reconhecer a ditadura militar como um desastre para a nação, não apenas para um grupo de intelectuais e artistas da classe média carioca ou paulistana. É verdade que essas pessoas, com muita dificuldade, conseguiram construir e publicizar uma narrativa que se contrapõe à narrativa hegemônica e golpista sobre a ditadura. Contudo, todo esse esforço precisa ser empreendido pelas demais camadas da sociedade. Precisamos ter condições, incentivos, ferramentas e coragem para fazê-lo. A imensa maioria dos produtos culturais dos quais dispomos, revelam a massiva presença de documentos, eventos e personagens da classe média. Ou seja, percebemos que tal classe “lidera” as narrativas que representam a luta pela democracia e sobrevivência à ditadura militar no Brasil. Essa liderança não pode ser definida como maquiavélica, mas se comprova como uma outra forma de controle e dominação, afinal é consequência das circunstâncias e desigualdades econômicas que fundam e circundam o país.
É esperado que essa “representatividade excessiva” da classe média resulte na percepção muito presente no senso-comum de que a ditadura foi um problema para os heróis e heroínas da classe média e para artistas revoltados/as. Sendo assim, acredita-se que quem não se enquadrou nesses grupos nada sofreu, ou pior: quem sofreu foi porque mereceu. Uma lógica absolutamente equivocada e favorável à ideia que as alas conservadoras querem que tenhamos: o autoritarismo só seria ruim para criminosos, artistas e revolucionários. Segundo essa mentira, “quem não deve não teme” e a ditadura não seria um problema para quem fosse “cidadão de bem” e rejeitasse qualquer envolvimento com os grupos “problemáticos”. Essa “representatividade excessiva” se dá, inclusive, através de produtos culturais que temos à nossa disposição e que alcançaram grande visibilidade, como a minissérie Anos Rebeldes (1992), segundo a qual a luta pela defesa da liberdade, pelo fim dos autoritarismos e repressões, adquire um tom menos político-social-coletivo e mais individual, com as liberdades sexuais, artísticas etc. Tais liberdades, bem como a luta em defesa delas, teriam sido exercidas e construídas pela e para a classe média branca. No entanto, sabemos que o autoritarismo afetou a nação em diversos níveis, de diversas formas ao longo de mais de duas décadas. Mas onde estão os registros que propagam as memórias das pessoas pobres, negras, trabalhadoras, maioria do país, em relação ao período? Dada a ausência de narrativas sobre esse grupo na maior parte dos produtos culturais que tratam da memória da ditadura, percebe-se que é urgente o fomento ao surgimento de produtos que tratam das suas perspectivas. Essa não é, contudo, uma falha a qual os/as sobreviventes da ditadura devessem se antecipar. Talvez sequer pudessem fazê-lo. Essa demanda é direcionada a gestores e gestoras, pensadores e pensadoras, diretoras, diretores, cineastas, museólogos/as, curadoras/es, contadores/as de histórias, professores/as e artistas brasileiros/as da contemporaneidade.
Temos, porém, um grave empecilho nesse sentido: parte significativa da classe artística, intelectual e cultural brasileira sofre de um intenso saudosismo com relação à década de 60, e seus heróis, heroínas, seus discursos e práticas em defesa das liberdades política, artística e cultural. Estão certos de que existiu um grupo de artistas, pensadores/as e agentes capazes de representar toda a luta pela liberdade no país. Exclui-se, assim, outras forças e grupos. Também acreditam que apesar da ditadura (alguns ousam insinuar que foi até em razão dela) alcançou-se uma rara qualidade nos produtos culturais. Através de uma perspectiva elitista e idealizada da época, artistas da chamada MPB, por exemplo, são colocados numa posição de vozes da nação, representantes de uma unidade dos valores, expressões e símbolos das culturas nacionais. Em geral com formação universitária, o grupo mantenedor dessa perspectiva opta por não incorporar à sua narrativa alguns históricos, entre os quais o pontuado pelo crítico brasileiro Roberto Schwarz, segundo o qual em 1970 a dita “cultura brasileira” não chegava a atingir, com regularidade e amplitude, 50 mil pessoas, num país com mais de 90 milhões de habitantes na época. Ou seja, nunca houve o tal aclamado momento no qual as culturas brasileiras estivessem representadas e definidas. Se esse momento existiu, tampouco o foi nas décadas de 60 e 70. Para tanto, seria necessário a inclusão de muitas expressões e artistas jamais alcançadas pela MPB, por exemplo. Como resultado dessa narrativa/imaginário temos também uma estagnação criativa. Não se supera a Tropicália, por exemplo. Apenas se venera-a. E pior: obras que ousem “superá-la” não raro são rejeitadas. Curiosamente, essa rejeição se dilui quando um dos guardiões da lenda dos anos 60 declara admirar algum/a artista. E então sobre essa figura recentemente inserida no panteão da “brasilidade”, são projetados ideais que denotam, através do saudosismo, uma profunda incompreensão daquele momento histórico. Uma análise crítica dos fatos não significa rejeitar o passado, muito pelo contrário: é urgente encará-lo de forma inteligente, honesta e complexa. Precisamos ser artisticamente irreverentes e politicamente estratégicos. Afinal, esses saudosismos se fortalecem num momento em que a sociedade brasileira se encontra mutilada do seu caráter delirante, propositivo. As possibilidades de vitória se encontram todas no passado. Tudo é sintoma de tragédia.
Niomar Moniz Sodré Bittencourt, nascida em Salvador, Bahia, em 1916, foi jornalista, proprietária do jornal Correio da Manhã e, ainda em 1948, participou da fundação, e posteriormente integrou o Conselho Deliberativo, do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, o qual dirigiu por uma década. Em janeiro de 1969, Niomar Moniz Sodré teve seus direitos políticos suspensos pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), sendo depois enquadrada na Lei de Segurança Nacional e presa. Ana Müller, que era uma das suas secretárias à época, em conversa com o autor desse ensaio, relatou que Niomar foi presa assim que chegou ao Rio após uma viagem que fez ao Recife, na qual se manifestou contra a ditadura. Chegando à capital fluminense, ela foi levada ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e, em razão do seu enfisema pulmonar, foi encaminhada ao posto de saúde do Corpo de Bombeiros após uma discussão acalorada com o General Luiz França de Oliveira. Nos primeiros dias da sua “internação”, sequer teve contato com os médicos e quase morreu. Em razão da pressão internacional, contudo, ela foi condicionada a uma prisão domiciliar. O posto de saúde onde Niomar Moniz Sodré Bittencourt ficou internada e presa funcionou no último andar do prédio onde atualmente existe o Museu de Arte do Rio (MAR). Diante desse relato, claro, o MAR não deve apenas contar a história da simbólica prisão sofrida por Niomar Moniz Sodré Bittencourt, mas fazê-lo de forma que as pessoas se percebam na História. Ou seja, expandindo os horizontes e incorporando outras leituras, viesses, pontos de interesse e discussão sobre a ditadura e a democracia brasileira. Onde estavam as pessoas pobres, negras, LGBTQIAPN+, deficientes, indígenas, camponesas, nordestinas, na ditadura? Quais marcas esse regime autoritário, violento e desigual deixou nessas famílias? Essa é a grande pergunta que permitirá a identificação da sociedade civil com a necessidade de preservar a democracia e discutir os horrores da ditadura. Esse é um compromisso que se alardeia após o oito de janeiro. Um compromisso do qual as classes artística, intelectual e cultural, sobretudo voltada para o setor cultural público, não podem se acovardar.
Até 10 de março, o Museu de Arte do Rio abriga a exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia. Curiosamente, essa é a única exposição no país que trata da democracia nesses termos, embora se abra para, por exemplo, as leituras indígenas do conceito. A mostra foi pensada logo após a vitória eleitoral do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Segundo Lilia Schwarcz, antropóloga, historiadora e uma das curadoras da exposição, “após quatro anos de governo do Jair Bolsonaro, o grande tema seria democracia. Democracia não como projeto completo, mas justamente como um projeto por definição incompleto, um processo, porque direitos a gente nunca acaba de constituir. Foi assim que surgiu a ideia da exposição”. A mostra itinerante optou por fazer um percurso diferente do percurso tradicional, cujo primeiro lugar é São Paulo ou Rio. Primeiro porque nós achamos justo, já que o governo Lula deve muito ao Nordeste. Mas também fizemos isso por uma questão política: as nossas histórias ainda são muito sudestinas. Ou seja, o Sudeste fala pela nação. Não pode ser assim, né?”, afirma a curadoria. Saindo de Brasília, no Centro-Oeste, a mostra começou sua itinerância pela Casa das Onze Janelas em Belém, no Pará, Norte do país, onde contou com a curadoria adjunta da artista visual Roberta Carvalho. Saindo de Belém, Brasil Futuro: As Formas da Democracia foi para o Centro Cultural Solar do Ferrão, no Pelourinho, em Salvador, Bahia, região Nordeste, onde esteve antes de chegar ao Museu de Arte do Rio (MAR), no Sudeste.A mostra é publicamente reconhecida como “fruto da mão de obra de centenas de trabalhadores que não pouparam esforços para erguer e materializar o sonho de um Brasil possível, democrático e socialmente justo”. Talvez por representar tão bem diversos pilares fundamentalmente democráticos, a exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia, no dia oito de janeiro de 2023, quando ainda estava no Museu Nacional da República (MuN), tenha sido invadida pelos golpistas antes mesmo que chegassem à Praça dos Três Poderes.
O educador Fernando Franq, quem recebeu parte dos golpistas invasores, relata como foi a traumática vivência: “(…) E foi muito doido, porque chegando no museu, eu lembro que eu vi muita gente descendo em direção à Esplanada, muita, muita gente com camisa do Brasil, muitos grupos falando muito alto.(…) E aí eu me lembro de chegar (ao Museu) e começar a ouvir pontos de discussão, ver muita gente fotografando as obras, chegando muito perto, falando de uma maneira agressiva sobre as obras. Eu lembro de abordar algumas dessas pessoas e falar ‘Oi, tudo bem? Você quer conversar sobre elas para entender melhor e tal?’. Tinha alguém falando que o Lula tava pagando por aquilo e eu tentando explicar, né? Era minha função, era meu dever, eu era mediador. (…) Eu lembro dessa moça que ficou muito, muito afetada por uma obra que tinham várias televisões, que estavam inclusive desligadas, e tinha uma pessoa meio saindo da obra, uma pessoa derretida, tinha umas coisas militares, tinha um porco e ela falou: ‘aqui falando mal da polícia, chamando de porco’. Eu falei ‘não, espera, você sabe o contexto?’. Eu fui explicar que era a obra de uma pessoa que mora numa favela do Rio de Janeiro, onde a população está vivendo essa violência e a polícia acaba aparecendo mais uma ameaça do que uma proteção (…). Tinha uma obra que eram várias pessoas rindo e elas diziam ‘tão rindo da nossa cara. Eu sei do que vocês estão falando, povo sem estudo. Eu sou formada em arte!’ e eu respondi ‘eu também, então vamos aqui tentar conversar, né? Como gente civilizada?’. Não dava para manter uma conversa, não dava para trocar ideia, não dava para a gente fazer o nosso trabalho. Então foi aí que foi decidido fechar o museu, né? A gente fechou. Aguardamos um pouco para sairmos em grupo para a rodoviária. Aí foi o tempo de pegar o metrô, chegar em casa e ligar a televisão e as coisas já estavam sendo completamente quebradas”.
Diante da invasão da exposição Brasil Futuro: As Formas da Democracia quando apresentada no Museu Nacional da República, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, precisamos nos atentar para o fato de que não existe ignorância no que tange aos autoritarismos e sua relação com a sociedade. Existem estratégias e lógicas que às vezes são de difícil compreensão porque escondidas sob o véu da tolice. Portanto, faz-se necessário discutir o que é arte em tempos de guerras fomentadas pela escalada do conflito imposto pelo neoliberalismo e o “neoautoritarismo”.
Novos dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil tem 580 mil estabelecimentos religiosos (de todos os tipos) frente a 264 mil instituições de ensino e 248 mil unidades de saúde. Ou seja, temos mais instituições religiosas do que hospitais e escolas juntos. Isso talvez signifique que precisamos contemplar a cultura produzida nesses centros religiosos para pensar a memória da ditadura e também para propor um diálogo sobre democracia. Afinal, são mais de meio milhão de centros de referência estética, filosofia, artística e cultural. Esse diálogo deve ser distinto daquele usualmente proposto pela Academia. Precisamos retomar o ponto apresentado por Alfredo Rosi, segundo o qual “as formas religiosas voltam a interessar os estudiosos do Brasil, já não como ‘resíduos’ de uma mentalidade atrasada e bárbara, mas como estímulos poderosos à vida em comum, saídas grupais do desespero e da opressão, sem falar em sua qualidade de fontes poéticas e musicais inexauríveis”. Esse interesse se manifestou, por diversas razões e de diversas formas também problemáticas, por religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, por exemplo. Mas não se desenvolveu com as igrejas evangélicas. Hoje seus líderes detêm um enorme poder político e eleitoral.
Contudo, o que há em grande parte da classe artística brasileira não é diferente do elitismo que incapacita grande parte da esquerda branca e academicista, segundo a qual a Igreja (a princípio católica) é alinhada a toda perspectiva hegemônica, capitalista, escravocrata e misógina. Embora essa elaboração seja absolutamente coerente e verdadeira, tendo como base fatos e documentos históricos, ela se encontra errônea quando nos impõe uma dicotomia que nos impede de perceber o seguinte: o atual poder emanado pelas Igrejas Evangélicas no Brasil decorre não apenas dessa “natureza dominadora” que muitos/as vêem nas Igrejas, mas resulta, sim, de uma série de elementos pontuados por especialistas nessa ascensão, os quais, em geral, apontam como fator crucial dessa escalada a ausência do Estado Brasileiro nos territórios carentes, periféricos e negros. Tal ausência, que atravessou inclusive a ditadura militar, apesar da vitória da democracia, segue se manifestando das mais perversas e violentas formas, sobretudo através da violência policial e do alto índice de desemprego. Olhar para o reclame do problema não deveria nos impedir de olhar para o centro dele. O diálogo se estabelece quando atravessamos o nítido superficial. Por exemplo, precisamos discutir a violência policial que, num movimento similar ao de um genocídio, assassina jovens negros minuto a minuto, dia a dia. Para tratar desse tema, não precisamos apenas retratar policiais como porcos, mas também discutir e representar quem os torna semelhantes a porcos. Digo, estabelecer diálogos sobre o currículo oferecido pelas escolas militares no Brasil, o salário dos policiais, o tratamento que jovens recebem quando ingressam obrigatoriamente no Exército Brasileiro e as mais amplas manifestações de violência que engendram e geram outras manifestações de violência. A classe artística brasileira, bem como a classe política, se quiser tratar de democracia, política e violência com inteligência e capacidade argumentativa, terá que estudar formas de abordá-las para além do que a Academia e as redes sociais nos permitem vislumbrar. Além do mais, a cultura evangélica pode vir a ser uma forte expressão da cultura negra e popular brasileira. O debate é sério e exige tanto coragem quanto responsabilidade. Esse é um diálogo que não pode se dar apenas entre semelhantes.
No último dia 10 de fevereiro, sábado de carnaval em grande parte do país, um meme muito representativo invadiu as redes sociais. As cantoras Baby do Brasil e Ivete Sangalo protagonizaram um diálogo peculiar durante o encontro do trio elétrico no qual Sangalo cantava com o camarote no qual Baby estava e através do qual uma emissora de TV aberta transmitia a celebração. Em dado momento da curta conversa, Baby do Brasil fez um discurso religioso segundo o qual todos devemos ficar atentos porque “nós entramos em apocalipse. O arrebatamento tem tudo para acontecer entre 5 e 10 anos. Procure o Senhor enquanto é possível achá-lo”, declarou Baby. Ivete Sangalo no trio, num movimento muito sagaz, embora sem esconder a surpresa, respondeu: “eu não vou deixar acontecer, porque não tem apocalipse certo quando a gente maceta o apocalipse”. Baby pediu para que Ivete cantasse “Minha Pequena Eva”. A canção é sucesso absoluto no carnaval. Mas a razão pela qual Baby fez o pedido se revela na referência que a canção faz ao apocalipse. O pedido, contudo, não foi atendido. Ivete, num tom delicado e corajoso, comunicou que cantaria Macetando, parceria dela com a notável cantora e compositora Ludmilla. A música foi um dos maiores hits do carnaval de 2024.
Joscimar Silva, cientista político e sociólogo, professor no IPOM UnB, compartilhou no seu X (antigo Twitter) uma reflexão sobre esse encontro entre Baby do Brasil e Ivete Sangalo no carnaval de Salvador. Segundo Silva, “Baby, ou melhor, Apóstola Baby das Nações, agora trabalha no projeto de expandir a cultura gospel para os espaços não alcançados. Inclusive ela declarou isso em entrevistas quando voltou aos palcos, anos depois da sua conversão. Na perspectiva da Teologia do Domínio, à qual baby e a coalizão apostólica internacional se filia, a sociedade é constituída por ‘montes’ sob os quais o conservadorismo cristão deve governar: igreja, educação e ciência, economia e negócios, governo, cultura e entretenimento. O carnaval, sendo a maior festa popular do Brasil, não iria ficar de fora dessa. A Teologia do Domínio diz que as igrejas não devem mais fazer retiros, mas devem ficar e ocupar as cidades lutando contra os deuses carnavalescos”. Contudo, Silva faz ponderações afirmando que “a Teologia do Domínio não é a que orienta todos os segmentos evangélicos, muitos grupos evangélicos são tolerantes, ecumênicos e respeitam a cultura popular brasileira sem querer dominá-la. Tanto é que você pode encontrar vários amigos evangélicos, inclusive líderes, que agora estão pulando carnaval sem nenhum projeto de domínio, só para confraternizar mesmo. A cultura e os grupos sociais não são estanques”, afirma o professor.
Além dos estudos acerca das diversas tendências religiosas e políticas dentro das igrejas evangélicas, devemos nos atentar profundamente à resposta que formulamos a esses cenários. Oduvaldo Vianna Filho, ator e dramaturgo, um dos criadores da popular série A Grande Família, afirma que “a postura mais popular que existe é a conquista da tragédia, a descoberta da tragédia; olhar nos olhos da tragédia é fazer com que ela seja dominada”. Macetar o apocalipse significou trazer para a voz do povo a resposta ao desastre. A reação de Ivete Sangalo, por exemplo, simboliza o ato de propor uma contra-narrativa em diálogo. Precisamos então macetar, isto seria, dialogar honesta e popularmente sobre a tragédia representada pelo discurso do autoritarismo. De imediato, é fácil acreditar que Sangalo tenha apenas ignorado a proposta feita por Baby. Essa conclusão não pode ser verdadeira uma vez que Sangalo também faz menção a Deus e propõe outra narrativa que mais convém ao momento e a ela mesma, como num bom diálogo. E isso só existe quando há a busca por um terreno comum, referências (como “deus”), conceitos e vivências partilhados com a finalidade de propor algo que nos convém. É esse um exemplo de ato democrático necessário. Nesse sentido, se partimos do pressuposto de que o diálogo é a chave para uma negociação ou revolução, precisamos incorporar outro pressuposto: tê-lo como ponte entre desiguais. Isso seria, enfim, assumir o caráter político da Arte e construir novas memórias e narrativas democráticas.