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Entrevista ao curador Bruno Marchand

Bruno Marchand é mestre em Estudos Curatoriais pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e doutorando em Arte Contemporânea na Universidade de Coimbra. Entre 2009 e 2013, foi curador do Chiado 8 e, desde março de 2020, assume o cargo de Programador de Artes Visuais da Culturgest. No âmbito da mais recente exposição do ciclo Território, patente na Galeria da Fidelidade Arte, conversamos com o curador e escritor sobre o seu percurso e ofício.

O Bruno desenvolve uma carreira já bastante extensa e diversificada, no que toca a um vasto conjunto de artistas, colaborações, diferentes espaços e modelos institucionais. Num olhar retrospectivo, como avaliaria o seu percurso e crescimento enquanto curador? 

Devia estar a dizer-te que tem sido espectacular, que sempre estive ao leme da minha carreira e que nada acontece por acaso, mas como não quero insultar a inteligência dos leitores da Umbigo, digo que me puz a jeito, trabalhei muito, tive sorte, conheci sucessos e fracassos. Ao contrário do que se poderá pensar, o “puz-me a jeito” diz respeito às escolhas que fiz ao longo do percurso: as opções académicas, o foco em determinados artistas, o não fazer tudo o que aparece, o saber esperar… O resto foi mesmo trabalho, muito trabalho, sorte, mais trabalho e uma grande dose de generosidade por parte de inúmeras pessoas com as quais pude trabalhar ao longo destes vinte anos.

Em todo o caso, diria que muito do que se passou nestes anos se ficou a dever a uma apetência para recolher informação e acumular experiência nas diferentes dimensões da prática curatorial. A minha tese de mestrado, começada em 2004, dá, de certa forma, o mote para estas duas décadas: tratava-se de perceber o que se deveria saber sobre a curadoria antes de avançar para a prática curatorial. Coisas como: qual a história da curadoria e que modelos a animaram no contexto ocidental (da grécia antiga a Harald Szeemann)?, qual a especificidade da prática curatorial (a questão da autoria, a discursividade, a curadoria como prática indutiva, acto expositivo vs exposição, os modelos histório e ahistórico, como se decompõe o “complexo expositivo”, etc.)?, quais a origem e a natureza do poder curatorial (perante quem ou perante o quê é responsável o curador)?, quais as diferenças entre arte, experiência estética e experiência artística (onde se analizavam estes conceitos para esclarecer a natureza historicista da última)?, etc.

Esta reflexão acontecia ao mesmo tempo que dava os primeiros passos na vida profissional, que começou, em 2003, na Galeria 111, onde aprendi muito do que sei sobre produção de exposições. Em 2008 tornei-me independente e, desde então, tenho feito por trabalhar em tantos ambientes ligados àprática artística e/ou curatorial quantos possíveis: colaborei com instituições como a Culturgest, Gulbenkian ou Serralves, fundei uma secção de cariz historiográfico na revista L+Arte, dei aulas no Ar.Co e na ESAD, escrevi para catálogos e livros, participei em júris, emigrei para a Suíça e Espanha e, no regresso a Portugal, em 2016, trabalhei três anos na Associação Zé dos Bois. Sou Programador de Artes Visuais da Culturgest desde Fevereiro de 2020.

É claro que muito do que se passou ao longo destes anos foi absolutamente circunstacial, mas também é verdade que, face ao que as circunstâncias me foram oferecendo, tomei decisões em muito baseadas no quanto uma dada experiência poderia acrescentar ao meu conhecimento sobre a área artística e sobre a prática curatorial em particular.

Ao suceder Delfim Sardo na posição de Curador de Artes Visuais da Culturgest, muito se falou sobre uma nova geração de curadores, cuja formação é também resultado da primeira pós-graduação de curadoria em Portugal, na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Como traça este paralelo entre a sua geração de profissionais e aquelas anteriores e vindouras? Como a forma de se pensar a curadoria pode estar se transformando, especificamente no contexto português?

Julgo que é inegável que a minha e as gerações vindouras têm acesso a uma formação específica mais apurada do que as gerações anteriores. Basta contar o número de cursos de curadoria que se fundaram em Portugal nos últimos 20 anos. Todavia, isso não se traduz necessariamente numa maior qualidade no que à prática curatorial diz respeito. Parece-me inclusive que, em algumas áreas do trabalho curatorial, se assistiu a uma regressão preocupante. É o caso da produção de conhecimento. Na minha opinião, escreve-se menos e pior hoje do que se escrevia nos anos 1980 e 1990. Isso mina a credibilidade da prática curatorial como um todo, aproximando-a, mesmo que artificialmente, de um exercício discricionário de gosto sem qualquer base ou fundamento científico. Os equívocos que daqui surgem são mais perigosos do que parece.

Foi, durante quatro anos, Curador do Chiado 8, a galeria que o grupo Fidelidade dedica à arte contemporânea. Por este espaço já passaram, desde então, muitas exposições concebidas em estreita colaboração com a Culturgest, sendo a mais recente o ciclo Território, atualmente na quinta do que será um total de nove mostras. Poderia tecer uma espécie de linha cronológica desta parceria, num balanço da própria utilização e evolução do espaço ao longo tempo?

A relação entre a Fidelidade e a Culturgest, no que à programação artística diz respeito, chega este ano à maioridade. O primeiro ciclo programado pela Culturgest para o (então) Chiado 8 teve o seu início em 2006 e foi comissariado pelo Ricardo Nicolau. Os dois primeiros ciclos (2006-2008 e 2009-2013, este último comissariado por mim) cumpriram um programa concebido pelo Miguel Wandschneider, programador de artes visuais da Culturgest entre 2004 e 2016, e que pressupunha a realização de exposições individuais de artistas portugueses comissariadas por um mesmo curador. Ao longo desse período, sobretudo até 2010, o próprio espaço foi conhecendo novas configurações e ganhando salas até estabilizar no que se conhece hoje. Em 2013 a colaboração entre as duas instituições conheceu um interregno, tendo sido retomada em 2018, ano em que o Delfim Sardo, o programador da Culturgest que sucedeu ao Miguel Wandschneider, foi convidado a conceber um novo ciclo. A proposta do Delfim, que recebeu o nome de Reacção em Cadeia, mantinha o foco nas exposições individuais comissariadas por um mesmo curador, mas, desta feita, abria o projeto a artistas internacionais e, como o título sugeria, deixava ao critério de cada um dos artistas participantes a responsabilidade de nomear o artista que lhe sucedia. Foi também neste contexto que as exposições começaram a circular da Fidelidade Arte para a Culturgest Porto, apertando um laço mais evidente entre as duas instituições.

O Território foi por mim concebido neste espírito de alargamento que o Delfim iniciou. Optei por transformar a colaboração num ciclo de nove exposições coletivas, com artistas portugueses e/ou de outras nacionalidades, comissaridas por outros tantos curadores nacionais ou a trabalhar no nosso país. O convite que lhes é dirigido é simples: conceber um projeto expositivo que traduza ou que seja representativo daquilo que têm sido os seus campos de interesse preferenciais, os seus respectivos territórios de investigação.

Creio que a Fidelidade Arte é hoje um projeto de inquestionável relevância nos circuitos expositivos do país. Mais ainda: o seu posicionamento no campo da oferta expositiva é absolutamente singular porque, não sendo um espaço “alternativo” nem tendo vocação comercial, mas também não impondo aos artistas e aos curadores o peso e as responsabilidades habitualmente impostos pelas instituições museológicas, a Fidelidade Arte ocupa uma frequência única em Portugal. Se juntarmos a isto a sua centralidade na cidade de Lisboa e o facto de ser um espaço de acesso gratuíto, sabemos que estamos a falar de um projeto cultural que inventou para si mesmo um lugar no nosso panorama.

As duas mais recentes exposições do ciclo Território a serem apresentadas na Galeria Fidelidade Arte, Two Faces Have I – patente até 3 de maio – e Fazer, tiveram, respectivamente, curadoria do coletivo Ampersand e curadoria conjunta de Frederico Duarte e Vera Sacchetti. O que pode nos dizer sobre a particularidade destes convites e do processo de construção de uma curadoria colaborativa?

O aparecimento da Vera e do Frederico no ciclo prende-se com uma última característica que tinha definido para o Território e que passava pela possibilidade integrar nas exposições objetos vindos do campo alargado da cultura material. Quando pedimos a curadores que nos tragam os seus territórios de investigação, estamos a fomentar, também, uma abertura a universos que podem incluir objetos não necessariamente artísticos ou não necessariamente contemporâneos. Cada convidado tem-se situado perante o desafio de forma distinta. O Natxo Checa trouxe para a sua exposição um conjunto vasto de objectos etnográficos, exemplares do seu interesse nas contaminações entre esse campo de produção e as artes moderna e contemporânea. A Ana Anacleo, que ocupou o espaço logo de seguida, optou por verter o lado investigativo da sua prática na publicação que a acompanhou, não tendo a mesma um impacto, digamos, material na exposição. O convite ao Frederico e à Vera, que são críticos e curadores de design, tinha a ver com a vontade de ter um momento no ciclo em que a cultura material teria quase inevitavelmente uma presença maior. Ou seja, um momento em que as forças se inverteriam. No caso, o Frederico e a Vera levaram a oportunidade às últimas consequências e não só fizeram uma exposição sem objetos artísticos, mas fundaram, a partir deste convite, uma revista sobre design em língua portuguesa. Numa atividade onde as produções são tantas vezes efémeras, fico particularmente feliz com esta concretização de uma revista que vai perdurar.

O Ampersand é um coletivo de editores, críticos e artistas franceses que se sediou em Lisboa em 2017. Em diferentes pontos da cidade tiveram espaços onde foram partilhando a vertente curatorial do seu trabalho com o público, sempre numa lógica de total independênica e imbuídos do espírito DIY. Como acontece com as publicações associadas ao Ampersand, as exposições partem de uma base investigativa profunda pelos arquivos, pelas coleções e pelos acervos refundidos de artistas e amigos de artistas que guardam alguma da produção contemporânea menos conhecida: artistas e/ou produções que se furtaram às regras dos circuitos ou que foram deliberadamente negligenciados pela voragem da história e que precisam ser revistos. Para a exposição que conceberam para o Território, e a qual é absolutamente exemplificativa das suas metodologias e dos seus objetivos, a Alice Dusapin e o Martin Laborde – o núcleo duro do Ampersand – convidaram o Justin Jaeckle para partilhar a curadoria. Se entendermos (como eu entendo) que a tarefa propriamente curatorial é a da escolha e da mise-en-scène das obras no espaço, então a esmagadora maioria das curadorias são gestos colaborativos e partilhados, sobretudo com os próprios artistas.

Com um doutoramento em Arte Contemporânea em curso, dá-me também vontade de perguntar, em linhas gerais, como enxerga as relações entre a arte, a escrita e o pensamento filosófico. Que impactos e que importâncias têm a abstração – enquanto aspecto comum à criação, à imaginação e ao conceito – num mundo como o que vivemos, no qual crises, genocídios e catástrofes de todos os tipos parecem firmar-se como norma?

Tenho um problema de base com essa pergunta porque ela parece partir do princípio que essa abstração de que falas, e que ligas às noções de criação, imaginação e conceito, é contrária a uma relação crítica, consciente e responsável com os problemas que assolam o mundo nos dias de hoje. Se algum percurso tenho feito na área da filosofia, ele passa pela minha insistência nos autores pragmatistas, e os filósofos pragmatistas tendem a suspeitar da ideia de “arte pela arte” ou da proverbial noção de inutilidade da experiência artística. Acompanho-os na visão da experiência artística como uma via para religar, reforçar e potenciar o encontro sensível entre o indivíduo e o mundo, entre o indivíduo e o Outro. A haver um movimento de abstração nesta experiência, ela diz respeito não a um alheamento, mas precisamente ao seu contrário: a um foco que suspende a atenção difusa que governa a nossa experiência quotidiana e que nos conecta, no melhor das nossas capacidades, com o que nos é estranho. A experiência artística é, nos melhores casos, a inscrição (diria mesmo, a incorporação) do Outro na nossa sensibilidade. E o Outro, já se sabe, é sempre um horizonte de medo. Claro que isto não resolve, por si, os problemas do mundo (nem creio que seja justo exigir isso aos artistas visuais como um todo), mas contribui mais do que parece.

Onde residem os seus principais interesses criativos, hoje? O que nos pode antecipar sobre as próximas exposições a inaugurarem na Galeria Fidelidade Arte e na Culturgest?

No que às escolhas propriamente artísticas diz respeito, continuo a privilegiar os autores cujas obras fundam cosmogonias, trabalhos singulares cujo poder, embora indesmentível, dificilmente se consegue descrever ou localizar de forma precisa. Curiosamente, parece-me que estes continuam a ser os artistas que fazem o seu caminho nos antípodas do academismo – essa categoria que evoluiu de um bem-fazer genérico e disciplinar oitocentista para uns atuais bem-pensar e bem-querer sociais que, não tendo problema em si mesmos, se transformam amiúde numa cartilha moral que tende a nivelar, instrumentalizar e cercear a liberdade criativa. Isto não significa que prefiro artistas acríticos ou ensimesmados. A programação da Culturgest tem sido pautada, aliás, por artistas que estão sintonizados (alguns deles avant la lettre) com as grandes questões dos nossos dias. O que acontece é que evitam deliberadamente a via ilustrativa, demagógica, simplista e deslumbrada, preferindo usar de uma subtileza cujos envios, sendo menos óbvios (e muitas vezes por causa disso), me parecem mais consequentes e poderosos. É também por isso que insisto em artistas que usam o humor ou ferramentas conexas dentro dos seus trabalhos. Parece-me continuar a ser uma das formas mais generosas e eficazes de exercer e partilhar o espírito crítico.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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