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Menstruum de Ana Manso na Galeria Pedro Cera

A cor, poderosa ferramenta na expressão artística, capaz de criar experiências estéticas, comunicativas e sensoriais, é, na exposição da Ana Manso, matéria.

A artista, que nos habituou às suas criações de ritmo e movimento através da cor, não faz exceção nesta que é a sua quinta exposição na galeria Pedro Cera. Pelo meio da forma como manipula e articula as cores, a artista provoca-nos uma sensação de imersão. Guia-nos através de gestos intuitivos, que ora aclaram e tornam-se mais evidentes e límpidos, ora escondem-se, através de uma espécie de neblina consequente das velaturas coloridas. São camadas sob camadas sobre camadas que vão iniciando formas, transparências e profundidades. O resultado vai para além daquilo que é empregue na superfície – é um conjunto de construções de composições vibrantes, parcialmente diluídas, que nascem da amálgama de cores e linhas que a artista opera, criando finos detalhes e formas que ecoam como ondas energéticas.

A cor não é novidade. Sabemos que Ana Manso é cor. Cor e camadas. O que é novidade são as técnicas que se apresentam de forma mais ou menos perceptível nas obras desta exposição. A introdução do tie-dye, do stencil, dos carimbos, a manipulação do espaço: tudo isto conduz e dá o mote àquela que é a experiência visual e sensorial diante das nove obras, ora horizontais como a friso ou a mão invisível (2024), ora verticais como a menstruum (2024), em díptico (cariátide, 2023-2024) ou mural (êxtase, 2024).

Talvez sob influência das palavras da Ana Manso, que diz considerar a pintura como uma pedra mágica[1], observo as obras com caráter ritualístico, místico até. Alguns sistemas de crenças afirmam que todos os objetos emitem uma vibração energética única. A trepidação visual, decorrente da forma como Manso manipula a cor e trabalha as camadas, contamina as pinturas e fazem-me percepcioná-las como uma espécie de cristais – as tais pedras mágicas – capazes de absorver e, até, quem sabe, pensando no processo de renovação e regeneração que Ana Manso procura através da sua prática artística, limpar e converter energia. Proponho que vejamos Manso, nesta exposição, como uma espécie de curandeira, uma possível intermediária entre diferentes planos dimensionais, hábil na captação da frequência das coisas, no abrandamento do tempo, na cristalização e fossilização de energia nas suas pinturas. Experienciamos quase que um desfoque resultante da vibração, um momento noutra dimensão em que tudo pulsa, tudo move. É o que age, com gestos impulsivos e nada programados, ao comando da pedra-pintura-mágica, tornando visível o dinamismo, a cinesia e a energia do deserto (2023), dos veios veias (2024) ou do ouro vermelho (2023).

Manso vai desenvolvendo, por vezes com surpresa pelo resultado, uma fusão de linhas e formas que nascem do movimento, do aniquilamento da imobilidade suprema. Como se forças exteriores transformassem pontos em linhas ondulantes e vibrantes, fruto de diferentes forças e combinações externas[2]. É a maximização de um aparente fluxo de energia que torna estas obras orgânicas. Eterniza a impressão dos gestos fluidos que a artista repete, conferindo-lhes um caráter de espiritualidade enigmática, onde é incorporada a sua sensibilidade feminina. Essa aura é sentida através das complexas mas suaves composições que fremem, através de véus que andam para lá e para cá. Manso cria obras vivas, que abundam em movimentos que circulam indefinidamente, indiferentemente a quem olha. São obras que não se encerram, são intangíveis.

Se por vezes não parece pertinente debruçarmo-nos sobre o título da exposição, aqui parece-me que Menstruum, pela sua ambiguidade, é importante. Trata-se de um termo que não é comummente utilizado na linguagem quotidiana, sendo aplicado sobretudo em contextos específicos, como na alquimia e na química, podendo referir-se a um solvente ou meio líquido, utilizado para extrair compostos de uma substância, ou a “mês”, tendo sido historicamente associado a processos cíclicos, àquilo que ocorre mensalmente, como o ciclo menstrual nas mulheres.

Que alguma coisa ecoa sensibilidade feminina já referi, mas pensemos no cíclico. Partindo do pressuposto que é algo que ocorre em ciclos repetidos ou periódicos, seguindo um padrão de repetição regular, é inevitável não pensar em Ana Manso no seu atelier, a repetir gestos, a inaugurar rituais. Da sua necessidade de explorar cada vez mais a superfície, como a própria artista indica[3], nascem pinturas que, no fim, não são aquilo que começaram por ser. Ciclos de soma e subtração terminam em planos camuflados, deixando-nos apenas adivinhar o instante em que Ana Manso esteve em cada um dos momentos, em cada etapa, que vai dando lugar a uma e a outra, até que alguma força externa diga basta.

A exposição resulta da vontade de descobrir o corpo da pintura, de atravessar a superfície e ir mais fundo, da sugestão de texturas e densidades subsequentes da relação desierarquizada de Ana Manso com os pigmentos, com os pincéis, com a vontade e o vento.

Menstruum de Ana Manso pode ser visitada na galeria Pedro Cera até 27 de abril de 2024.

 

[1] Frase presente na folha de sala da exposição, da autoria de J. M.
[2] Kandisky, Wassily. (2019). Ponto, Linha, Plano. Arte & Comunicação, Edições 70, p. 61.
[3] Vídeo da artista a propósito da exposição no site https://pedrocera.com/exhibitions/menstruum.

Maria Inês Augusto, 33 anos, é licenciada em História da Arte. Passou pelo Museu de Arte Contemporânea (MNAC) como estagiária na área dos Serviços Educativos e trabalhou durante 9 anos no Palácio do Correio Velho como avaliadora e catalogadora de obras de arte e coleccionismo. Participou na Pós-Graduação de Mercados de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa como professora convidada e actualmente desenvolve um projecto de curadoria de exposições de artistas emergentes. Tem vindo a produzir diferentes tipos de textos, desde publicação de catálogos, textos de exposições a folhas de sala. Colaborou recentemente com a BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas 2023.

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