Mais do que uma música de festa, um grito de ousadia e liberdade. A exposição FUNK no Museu de Arte do Rio de Janeiro
Quem nunca saiu à noite e, em certo momento, começou a dançar ao ritmo de funk brasileiro, que atire a primeira pedra. Mais do que um ritmo dançante que desafia quem o ouve a não balançar as ancas, o funk é um ecossistema vivo, que grita em resistência. Patente até o dia 24 de agosto de 2024, a principal exposição da temporada no Museu de Arte do Rio de Janeiro, FUNK: um grito de ousadia e liberdade, tem como o seu principal objetivo contar aos visitantes a história por trás do funk e os contextos que possibilitaram que o género surgisse no cenário carioca e ganhasse eventualmente o mundo.
Como uma flor que cresce no betão: atrevida e rija, o funk teve o seu início na cidade do Rio de Janeiro, onde, ainda nos anos 1970, em meio à ditadura militar que assolou o Brasil com a sua sistemática violência estatal, floresceu o movimento associativista negro. Este influenciou mudanças de comportamento da juventude negra enquanto disseminavam a importância da consciência racial no Brasil. Uma das inspirações do movimento associativista negro brasileiro foi o movimento de resistência negro dos Estados Unidos, que já se estabelecia desde meados do século XX, com os Black Panther, Malcolm X e Martin Luther King (cito apenas estes três e grandes nomes para não fazer um name dropping gigantesco e desviar o foco do texto), que vivia o seu auge cultural com a insurgência da Black Music. A Black Music, como é natural, deambulava-se entre muitos subgéneros musicais, dentre eles, o funk estadunidense, que foi um desenvolvimento dos ritmos R&B e da Soul Music, influenciado por artistas como James Brown, George Clinton and Sly and the Family Stone e muitos outros.
Durante os anos finais da ditadura militar e início da redemocratização do Brasil, as viagens ao estrangeiro não eram exatamente tão comuns para a grande parcela da população. Entretanto, artistas que estiveram nos Estados Unidos, como Tim Maia, trouxeram influências rítmicas e comportamentais (no quesito da música como arma de resistência política negra) para o Brasil, que foram adotadas e subvertidas a cultura musical brasileira.
– pro tip: escutem 1971, álbum do Tim Maia; não vão se arrepender, prometo.
A música sempre foi um refúgio para que as pessoas pudessem continuar a vida, apesar das adversidades do quotidiano. Esta premissa, entretanto, faz-se verdadeira especialmente para a população negra e periférica. No Brasil, nos finais dos anos 80 e 90, a cidade do Rio de Janeiro assistiu ao crescimento da retomada das próprias narrativas pelas comunidades das favelas, esquecidas pelo governo central da cidade. Foi nesta época que os bailes, grandes festas, começaram a se tornar mais presentes na vida das favelas. Nestas festas, historicamente dominadas pela presença do samba, os ritmos musicais derivados da Black Music estadunidense, principalmente a Miami Bass, que incorpora o ritmo dos sintetizadores eletrônicos às letras de hip-hop, tomaram o gosto popular. Foi assim que nasceu o funk brasileiro: uma mistura de influências, enraizado na resistência negra, que agrega os ritmos de protesto com a cultura brasileira. Importante mencionar, também, que o ritmo dos atabaques – tambores utilizados nas cerimónias religiosas do Candomblé – também construíram o toque ritmado característico do funk brasileiro.
– pro tip 2: O álbum Funk Brasil Relíquias (DJ Malboro Remixes/ Vol. 1) é um ótimo exemplo, se quiserem escutar o funk brasileiro deste período mais embrionário e experimental do género.
A primeira parte da exposição é dedicada a contar essa grande história, desde o movimento associativista negro até os primeiros bailes das comunidades cariocas, através de álbuns de música, fotografias, pinturas, vídeos e esculturas, numa sala lindíssima de proporções colossais. A mostra – composta por mais de 100 artistas brasileiros e estrangeiros, dentre os quais Herbert, Vincent Rosenblatt, Blecaute, Gê Vianna, Manuela Navas, Maxwell Alexandre, Fotogracria, Emerson Rocha, Panmela Castro e Bruno Lyfe – convida os visitantes a ainda mais uma sala, onde destacam-se as facetas contemporâneas do funk, nomeadamente o funk feminista, o funk ostentação e o desenvolvimento do ritmo em fusão com a música techno contemporânea. Entretanto, sobre esta segunda parte, assim como se diz no Brasil, “vou deixar um gostinho de quero mais“, pois quero que o visitante sinta, sem interferências, esta grande mostra, obrigatória para quem está o Rio de Janeiro. Para que da próxima vez que o funk se faça ouvir, não somente se escute o ritmo dos tambores, mas, sim, que se consiga sentir o pulsar dos batimentos deste ecossistema tão vivo que é a cultura do funk.