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Hierophanies: entre o político e o imaterial, resistir e religar pelo olhar

No espaço expositivo da Brotéria, parte de uma programação cultural que coloca a estética em contacto com a espiritualidade, é certo que podemos esperar por mostras que desafiem e expandam as noções de sagrado e profano. Na Umbigo, eu mesma já escrevi sobre algumas destas exposições que, por diferentes perspetivas, semeavam discussões em torno dos limites entre o imanente e o transcendente: em They Swirl, de André Costa e Inês Mendes Leal, o vento tornava-se mote para pensar o encontro com o invisível; em Braço Cruzado, Paulo Brighenti e David Correia Gonçalves condensavam o infinito temporal e relacional na e da matéria; em Ex-votos, com curadoria de Marta Costa Reis e Catarina Silva, a força vital da promessa de um futuro insinuava-se através de diferentes amuletos. Desta vez, com Hierophanies, as paredes da Brotéria ganham uma inédita cor castanha, transformando-se cenograficamente para abrigar obras de Andreia Santana, Diana Policarpo, Harun Farocki, Hugo de Almeida Pinho, Louis Henderson, Maria Loboda, Onyeka Igwe e Riar Rizaldi. As peças, de proveniências múltiplas e estilos tão distintos quanto complementares, convivem de maneira harmoniosa e estimulante, fazendo vibrar o mistério comum e as tensões entre experiências sociais do divino por entre tempos, lugares e culturas várias.

Hierophanies tem a marca curatorial de Sara Castelo Branco, cujo percurso profissional transparece na seleção e apresentação cuidada de cada peça. Por um lado, uma certa predileção pelo suporte cinematográfico leva-nos a descobrir alguns autores e filmes usualmente pouco exibidos, projetos que, seja pela autoria ou pela temática – ou ambos –, propõem uma descentralização do olhar e uma complexificação do debate sobre as relações entre tecnologia, fé e ideologia por geografias diversas. Por outro lado – e, talvez, alusivo ainda ao próprio dispositivo ótico da fotografia ou do cinema –, a ideia do “trazer à luz”, presente a priori no título da mostra (do grego phanein), continua e transfigura a investigação da curadora e escritora acerca do sol e as suas representações coletivas. Sob esta rubrica – que se manifesta de forma mais explícita, até, nos trabalhos recentes de Hugo de Almeida Pinho, Unconquered Sun e Facing Sun, ambos datados de 2024 –, a exposição torna-se um exercício para conjugar a realidade e a aparência, a clareza e a sombra, o imaterial e a política.

É por isso que, numa atmosfera mística e dourada de devoção – na qual adentramos através de uma cortina, numa espécie de ritual de passagem –, somos convidados a refletir sobre os gestos quotidianos que dão sentido e concretizam o sagrado na vida individual e comunitária. Por intermédio do imaginário arqueológico, como método para a escavação e conservação do ancestral, Maria Loboda e Andreia Santana problematizam este contacto com o infinito. Na fotografia Zero Dynasty II (2017), da primeira, uma mão parece limpar a lágrima de uma máscara egípcia, abrindo, neste ato prático e terno, a possibilidade de conectar histórias, pessoas, mundos e cosmologias distantes. Sleeves (2020), da segunda, duas peças que se camuflam furtivamente à parede marrom da sala, oferecem um contraponto: ao fazer-se mestre na arte de roubar – ao solo, ao tempo, ao contexto –, que subtilezas e dimensões incorpóreas a prática da arqueologia ou da arquivística está, intrinsecamente, a abandonar? Onde e como ficam preservadas as qualidades anímicas de um objeto cujo destino e propósito originais não obedecem às limitações da matéria?

A mesma dialética aparece, por exemplo, entre a obra exposta de Harun Farocki e o conjunto de esculturas de Diana Policarpo. No filme Transmission (2007), o cineasta alemão aponta a sua câmara para alguns monumentos hieráticos ao redor do globo, como o Memorial do Vietname, em Washington; a estátua em bronze de São Pedro e a Bocca della Verità, em Roma; ou a pegada do diabo na Frauenkirche, em Munique. Com o seu olhar atento, num registo a um só tempo documental e experimental, observa o instante em que o toque entre a pedra e o corpo humano é capaz de rememorar e ativar um elo imortal. A repetição das ações sob a lente de Farocki confere algo de artificial, algo de infamiliar, aos rituais religiosos que vemos no ecrã; da mesma forma, porém, revela a potência social e emancipatória de uma experiência tão íntima como a fé e a promessa. Já com os desenhos em metal da artista visual portuguesa, a série Gift (2020), estamos novamente diante de um processo de desvirtuação e revalorização histórica, no qual artefactos utilizados em cerimónias potlatch, praticadas entre tribos indígenas da América do Norte, ganham novos contornos éticos e estéticos. A linha entre o que se ganha e o que se perde é ténue.

Depois, duas outras peças audiovisuais propõem questões acerca dos fantasmas da moralidade, engendrada por narrativas políticas e fixada na celulóide pelo cinema colonial britânico, no caso de Specialized Technique (2018) de Onyeka Igwe, e pelo cinema de horror indonésio, no caso de Ghost Like Us (2020) de Riar Rizaldi. Em ambos, mas também no filme Lettres du Voyant (2013) de Louis Henderson, diferentes estratégias de resiliência humanas e mais-que-humanas convocam novos modos de ver, sentir e crer em conjunto – demonstrando, uma vez mais, que as relações, continuidades e descontinuidades entre as escalas do mundano e do intangível são muito mais emaranhadas e complexas do que podemos pressentir.

Hierophanies está patente na Brotéria até 1 de abril de 2024.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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