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Em Goa, uma nova geração de artistas continua à procura da sua identidade e do seu lugar no mundo

São 7h da manhã. Uma mulher passeia, sonâmbula e lenta, no meio da estrada um cão, canteiros e persianas espreitam da soleira das portas de Mumbai e nessa mesma ruela ainda escura, num pequeno nicho, uma santa cristã iluminada por uma vela elétrica. Antes de partir para Goa, visitarei algumas exposições inauguradas por ocasião do Mumbai Gallery Weekend.

Ao circular pelas galerias de arte do bairro de Colaba encontro Line of Fire de Nikhil Chopra, que vive atualmente em Goa e cujas obras expostas na Chatterjee & Lal me despertam a atenção. Uma curta pesquisa leva-me também a descobrir os trabalhos de performance do artista, com destaque para uma intervenção recente no Met, de Nova York, que Chopra usou como casa, estúdio e galeria do seu próprio corpo.

A exposição, composta maioritariamente por desenhos largos a carvão e pastel, explora alguns dos temas que irei encontrar e viver em Goa. Falo da mutação da paisagem, um antigo cenário colonial hoje reclamado pelo turismo, e do vazio de significado que o processo acarreta. O tríptico Line of Fire I tanto poderia situar-se em Goa como em cenários semelhantes. No texto que acompanha a exposição, Mario D’souza aponta o exemplo do Vietname, onde Chopra esteve recentemente.

Para além da importância dos seus monumentos e práticas ancestrais, a Índia tem-se afirmado como um polo fundamental para a produção e divulgação de arte contemporânea. Mumbai e Nova Deli consagraram, nos últimos anos, o seu estatuto de centros importantes no circuito internacional e da Índia têm saído nomes tão sonantes quanto o do escultor Anish Kapoor ou, mais recentemente, o da artista Shilpa Gupta.

Num país que só em 1947 obteve a sua independência do domínio britânico e passou, depois, pela separação do Paquistão e Bangladesh, o campo de experimentação foi marcado por artistas como Francis Newton Sousa ou Vasudev Gaitonde. Estes, elaboraram com mestria uma síntese entre o domínio colonial britânico, na sua dimensão académica e estética, e o nascimento de um país independente, imerso na sua diversidade cultural, linguística e religiosa ao qual se procurou dar um destino coletivo e uma identidade nacional que abarcasse essa mesma multiplicidade de tradições.

O trabalho dessa geração tem ainda repercussão em Goa, um estado que integrou oficialmente a Índia Portuguesa até 1961. Derivado de um processo histórico singular e de uma componente híbrida – não totalmente europeia e não totalmente indiana – aqueles que aqui têm desenvolvido a sua prática acabam por situar-se também entre esses dois mundos. A cidade dá-lhes um contexto próprio, convidando-os a questionar através do seu trabalho o que significa experienciar e partilhar a sua identidade.

 

Demora a paisagem na janela do autocarro-dormitório, que atravessa a noite indiana até aqui vir madrugar e me deixa na paragem de Pangim. Há muito de cultura portuguesa nesta zona de Goa ou, melhor dizendo, reminiscências aqui deixadas ou inventadas pela gente que a habita. A latitude deve ser ampla o suficiente para chamar de portugueses artistas como Vamona Navelcar, nascido em Goa (então parte da Índia Portuguesa) em 1930, que completou as belas artes de Lisboa e ensinou por doze anos em Moçambique, antes de regressar à sua terra natal.

Vamona, ativo enquanto pintor, e o seu irmão Krishna Navelcar, um importante fotógrafo que documentou várias décadas de vida goesa, foram figuras acarinhadas pela comunidade local. A sua obra representa o período de transição vivido por Goa dos anos 60 até ao presente. Em homenagem a um irmão de ambos, precocemente falecido, os artistas passam a assinar o seu trabalho como Ganesh, nome da divindade indiana associada à ressurreição e à sabedoria.

 

 

Instalado em Pangim, limpo a poeira dos sapatos e saio ao encontro do artista Diptej Vernekar. Espero-o à porta de um bar, sob o sol quente da tarde. Diptej chega de mota, vindo de Velha Goa, pede-me que nos sentemos antes sobre o rio, povoado de barcos e casinos flutuantes. Ao ganhar um concurso da Fundação Oriente, o jovem indiano foi convidado a participar numa residência na Casa da Cerca, e partirá para Portugal no próximo mês de maio.

Falamos de Nikhil Chopra e do espaço por ele dirigido em colaboração com outros artistas, chamado HH Art Spaces, onde Diptej também já expôs, em Goa. São raras as galerias e os projetos institucionais na zona, sendo a cena artística alimentada maioritariamente pela iniciativa de coletivos e artistas, para além dos festivais que vão tendo lugar ao longo do ano. Iniciando o seu percurso na produção de esculturas para procissões hindus, Diptej realizou, depois, formação universitária em artes e integra, hoje, várias das estruturas informais ativas na região.

Com a evolução dos seus interesses e da sua relação com a paisagem de Goa, o artista acabou por se distanciar da figuração humana e da tradição mitológica que começou por trabalhar. Atualmente, desenvolve trabalhos de desenho, como Untitled (2016), que relacionam a natureza vibrante que o circunda com alguns símbolos materiais da intervenção do homem. Diptej utiliza, também, meios como o vídeo, a performance ou a instalação, por exemplo na obra Lost in Times (2013), mostrando-se sintonizado com algumas das práticas e atuais tendências globais.

Expressão da fusão da tradição indiana e portuguesa que caracteriza Goa é também o trabalho de Nalini Elvino de Sousa. Nascida em Portugal numa família de origem goesa, a realizadora tem-se dedicado a documentar vários aspetos singulares da cultura da região, desde que para cá se mudou em 1998. Através dos documentários que produz e das reportagens televisivas que realiza como correspondente da RTP, Nalini revela-nos muitas das estórias que subjazem a vida das comunidades goesas e portugueses na Índia.

Nos últimos anos, a realizadora tem acompanhado o nonagenário Braz Gonsalves, um saxofonista importante no cruzamento das técnicas do jazz com as ragas indianas. O músico goês, que chegou a atuar no Hot Club de Lisboa após o seu fundador assistir a um concerto que deu em Macau, simboliza bem esse potencial agregador de práticas e estilos que caracteriza, também, as artes plásticas, ou até mesmo a culinária goesa.

No seu estúdio em Pangim, o escritor, crítico e curador Vivek Menezes, aponta-me uma impressão que tem atrás de si, junto à janela de onde salta uma paisagem verde e exuberante. O quadro é composto pelos nomes de diferentes cidades ligadas pelos portugueses, da Ásia à África e às Américas. Fala-me, então, de como o contexto histórico deste território, situado num enclave da costa do Malabar, levou à formação de uma sociedade mista que integrou influências dos muitos povos que aqui se instalaram e tomou para si um aspeto português sem que a sua gente se sentisse inferior a qualquer homem branco vindo de outro continente, como documentam antigas narrativas de viagem.

Na prática, muitas das rotas comerciais associadas ao império português foram comandadas a partir de Goa, quando o país mostrou a sua fraqueza e ausência, acrescenta Vivek, referindo o período em que Portugal integra a União Ibérica como um momento importante em que os goeses passam a estabelecer contacto com as Filipinas ou o México. Enquanto curador, Vivek destaca a mostra Panjim 175, que organizou no contexto do festival Serendipity, celebrando a cultura mista de que é exemplo este bairro, erguido pela aristocracia goesa no século XVIII, face às epidemias que ditaram o abandono de Velha Goa.

Antes de o deixar, entregue ao trabalho matinal no seu estúdio, o meu anfitrião mostra-me um catálogo do Gropius Bau que coleta fotografias aí exibidas pela artista Dayanita Singh (que expôs recentemente em Serralves). Para esta fotógrafa indiana, o livro é um dos objetos principais do seu trabalho, sendo visto não como prova documental de uma exposição mas objeto expositivo em si, trabalhado como tal, neste caso com a célebre editora alemã Steidl. O curador indiano aponta-me então uma das fotografias, um autorretrato, um pouco ao estilo de Vivian Meyer, confidenciando que a artista o realizou em Goa.

Dias depois, a pintora Loretti Pinto recebe-me em sua casa e conduz-me pessoalmente pelos diversos trabalhos que formam a sua obra. Nas suas gravuras, desenhos e telas trata questões ligadas à comunidade onde nasceu, em Siridão, acompanhando as preocupações que marcaram o panorama político goês das últimas décadas. Entre elas destacam-se a autonomização e a procura de uma identidade goesa que integre a sua diversidade, ou a preservação da sua paisagem natural, ameaçada pelos excessos do turismo e pela exploração industrial.

Loretti, que hoje é professora na zona de Pangim, reconhece as dores de crescimento que o sistema de ensino enfrentava quando iniciou os seus estudos, denunciando o desinvestimento nas áreas rurais e piscatórias de Goa. Partindo da sua experiência pessoal e familiar a artista reflete sobre a migração das comunidades piscatórias, os ritos religiosos e cerimoniais que envolvem a partida e a ideia de prosperidade que muitos hão de ir procurar na Europa.

Através da sua pintura, Loretti anota algumas das novidades que vão surgindo em Goa como as explorações mineiras, que a artista denuncia enquanto interferência de interesses externos, ou os casinos que hoje operam sobre o rio Mandovi. O negócio do jogo, que estas megaestruturas flutuantes representam, é contraposto a uma ideia de pureza cristã, que ainda hoje marca o território. Loretti estabelece, assim, uma ponte entre a Velha Goa – cujo mapa utiliza num dos trabalhos da instalação exposta na mostra Panjim 175 – e novos hábitos que vão prosperando pela região.

 

Entre os 500 anos de ocupação portuguesa que continuam a alimentar o imaginário local e o futuro de uma Índia que se vem situando entre o secularismo e o nacionalismo populista, os artistas de Goa continuarão a expressar as questões mais prementes do seu meio, mostrando-se dispostos a aprender e integrar novas estéticas e geografias.

 

A realização deste artigo foi apoiada pela Delegação da Fundação Oriente na Índia.

Nascido em Sintra (1998), estudou história e literatura em Lisboa e Londres. Poeta e investigador de perspetivas diaspóricas da identidade portuguesa. Vive atualmente em Berlim.

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