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No retrovisor no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, XXVI Semana Cultural da Universidade de Coimbra

“52 artistas foram convidados a ver o desenho como espelho, mas um espelho retrovisor. Como se desenhassem no retrovisor ou incorporassem, como criadores de imagens, a própria condição de retrovisor (…).”[1]

O retrovisor é um complemento ocular que nos permite ter conhecimento do que abandonamos à medida que seguimos em frente. Esse atirar do sujeito para fora de campo consciencializa-o da distância negativa que, inadvertidamente, ele cria entre si mesmo e a realidade preterida, gerando um registo efémero de um certo passado involuntário. Essa habilidade do retrovisor é apenas possível graças ao facto de este se tratar de um espelho, evidentemente.

Na galeria do Colégio das Artes, onde a exposição No Retrovisor é dada a ver, compreendemos as propostas de 52 artistas que, na sua condição, propõem um sem-fim de foras de campo. À exceção do filme da autoria de Jo Joelson, uma abordagem mais literal da premissa curatorial, todos os outros trabalhos assumem uma circularidade ora mais presente, ora mais ausente, radicada numa espécie de fuga. Se nos detivermos na ideia de que todos estes elementos expostos são, conceptualmente, espelhos, poderemos considerar que nada está de facto ali. Todos os trabalhos apontam para um outro lado, uma realidade construída nas costas do espectador, ignorando-o, como um rumor de uma realidade inalcançável ou, pelo menos, perdida.

Se até ao final do século XIX, antes do aparecimento da fotografia, o espelho era o único reprodutor de imagens reais[2], na atualidade contemporânea trata-se de um elemento expansor, inclusivo do corpo do espectador, pérfido, potencialmente alucinogénio. Demitido da função vital de reportar o mundano, o espelho assume essa função heterotópica[3] de juntar o real e o não-real. Todo este jogo, à boleia da epoché, permite ao espectador compreender que, nesta exposição, está rodeado de fragmentos, pistas, vestígios e mentiras. Espelhos sem uma superfície refletora – um paradoxo essencial à compreensão.

Sobre esta perfídia, esta confusão em potência na superfície de um espelho, ocorre-me uma passagem do romance Aparição, da autoria de Vergílio Ferreira. Num momento de recordação de um seu quadro de infância, o protagonista conta-nos sobre um episódio em que, criança, achara que o seu reflexo no espelho era o de um ladrão que lhe assaltara o quarto. Depois do pânico, o pai explicara-lhe o sucedido, que esse outro no espelho era ele mesmo, forçando-o a repetir a ação. No dia seguinte, afoito, entendeu: “Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo (…)”.[4]

O ver-se ao espelho, uma atividade diária, corriqueira, crivo da nossa capacidade de exposição pública, é aqui pouco relevante. Importa, sim, ver o espelho como um dispositivo, como um portal para a consciência do outro que nos habita. Terá sido esse o exercício feito pelos artistas aqui convocados: dar ao retrovisor a sua obra, tentando compreender e registar o entendimento do seu retorno.

No Retrovisor decorreu no âmbito da XXVI Semana Cultural da Universidade de Coimbra e contou com obras de Albuquerque Mendes, Alice Geirinhas, Ana Catarina Fragoso, Ana Pérez-Quiroga, António Gonçalves, António Melo, António Olaio, Bruno Dias, Fernando J. Ribeiro, Filipe Romão, Francisca Carvalho, Gabriela Albergaria, Hugo Barata, João Belga, João Fonte Santa, João Jacinto, João Marçal, José Domingos Rego, Júlia Cruz, Juliana Julieta, Luís Alegre, Luís Silveirinha, Magda Delgado, Manuel dos Santos Maia, Manuel João Vieira, Mattia Denisse, Miguel Branco, Miguel Palma, Mimi Tavares, Nuno Sousa Vieira, Orlando Franco, Paulo Lisboa, Pedro Amaral, Pedro Cabral Santo, Pedro Gomes, Pedro Pascoinho, Pedro Proença, Pedro Saraiva, Pedro Tudela, Pedro Valdez Cardoso, Pedro Vaz, Pilar Mackena, Rita Gaspar Vieira, Rosana Ricalde, Rosi Avelar, Rodrigo Oliveira, Rui Algarvio, Tiago Baptista, Sara & André, Sílvia Simões, Simão Mota Carneiro, Susana Chiocca, Valdemar Santos e Jo Joelson.

 

[1] Excerto do texto da folha de sala, por António Olaio.
[2] Sardo, Delfim. (2017). O Exercício Experimental da Liberdade. Lisboa: Orfeu Negro, p. 92.
[3] cf. Michel Foucault.
[4] Ferreira, Vergílio. (2005). Aparição. Lisboa: Bertrand Editora, p. 70.

Daniel Madeira (Coimbra, 1992) é licenciado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais pelo Colégio das Artes da mesma universidade. Coordenou, entre 2018 e 2021, o Espaço Expositivo e o Projeto Educativo do Centro de Artes de Águeda. Atualmente, colabora com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC).

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