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Estrela-lágrima, de Inês Brites

O que vemos, quando a poética da técnica e da função dá lugar à pornográfica satisfação compulsiva de um desejo mercantil? Quando o objeto vira estorvo e perde o brilho da novidade. Quando aquela porcelana, aquele vidro, aqueles utensílios plásticos e silicónicos são relegados para o fundo da gaveta do armário das coisas esquecidas. Quando aquela memória colada àquele metal esculpido do antigamente perde o brilho e se extingue, qual estrela eclipsada e convertida em pó estelar. Porque a memória afetiva de um tempo reverbera no toque de um desses objetos esquecidos, porque a janela da história familiar se escancara e deixa entrar a brisa de uma mundanidade de conforto, um suspiro partilhado que embacia um souvenir de outrora, para guardar em si um sentimento humano, íntimo.

Em estrela-lágrima, Inês Brites resgata as memórias que guardamos desses objetos quotidianos. Neles, reconhecemos semelhanças com os candelabros de antigamente, os copos de vidro fosco dos nossos avós, os botões e os alfinetes guardados em jarros transparentes e caixas de bolachas e chocolates, os frascos de perfume há muito extintos, mas que conservam ainda uma sensualidade em potência – ou, em alternativa, uma plasticidade que encontra respaldo e continuidade na arte. É tudo muito familiar. Cada composição e decomposição de objetos respigados e resgatados ao tempo encontra em nós uma vibração, uma associação – cosmogramas de um tempo ido, cosmogramas de uma realidade complexa, feita de múltiplas cadências, vozes, ritmos.

Mas o que está aqui em jogo é bem mais que isso.

O que Brites desenvolve vai para além do simples achado e recontextualização. Está-se perante uma verve criativa, que transforma esses objetos em itens híbridos: sem anular a identidade primordial, a artista confere-lhes outra, radicalmente diferente – uma identidade que abre tensão entre a utilidade e a inutilidade, entre a compulsão consumista descartável, volátil, e a afetividade perene. Ambos os lados têm a sua pulsão encantatória, mas por motivos e meios distintos. Ao saber acumulado e industrioso que os objetos conservam do contexto corporativo, capitalista e hiperprodutivo, sobrevém a criação pela criação, a transformação pelo simples propósito humano de recriar e auscultar outras dimensões possíveis, compatíveis ou diferentes, em determinado objeto.

Neste ensaio de cores luminosas, neste astro que soçobra mas que se transforma em qualquer outra coisa, porventura mais interessante e imponente, sem, todavia, anular o que lhe deu corpo e expressão – a definição abstrata do fenómeno astrofísico da estrela-lágrima –, Brites esculpe uma ode a essas coisas singelas que seguram e estabilizam a vida, as várias forças e magnetismos, sejam eles humanos ou não-humanos, nervosos ou inertes, orgânicos ou inorgânicos. Tudo conspira para um balanço que nos passa ao lado: parafusos, abelhas carpinteiras, plantas, até as moscas, que nos lembram que há outras vidas e outros tempos dentro dos nossos…

Nesta perspetiva, podemos ainda entender a obra de Inês Brites num outro plano – o da filosofia contemporânea, que junta reminiscências da ontopoética nitzcheriana, da fenomenologia, e compila e trabalha, a tempo real, as recentes discussões da ontologia orientada a objetos. Aí, encontramos a reverberação e dialética comunicativas constantes entre o mundo e os seres, entre o espectador e as estruturas visíveis e invisíveis, humanas e não-humanas. A vida abunda de significados, que a arte e a poesia desvelam e apreendem na sua essência mais pura e sem a limitação do reducionismo científico. Neste “jardim de esculturas” periclitantes, somos convidados a estabelecer um diálogo emotivo com os objetos, criando e recriando significados, intuindo e imaginando realidades para além das nossas. Brites obriga-nos a um olhar renovado e radical sobre as coisas que povoam os nossos lugares, sobre as estruturas escondidas e os ritmos que jogam com os seres humanos, entre eles e para além deles. É uma domesticidade que fala, se agita e devolve uma certa fantasia ao que é costumeiro e que faz a vida das horas vagas.

Estrela-lágrima, de Inês Brites, está patente na Galeria 3+1 – Arte Contemporânea até 27 de abril. O texto expositivo é da autoria de Filipa da Rocha Nunes.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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