California Dreamin’ de João Fonte Santa na Stolen Books
Gotta get some sunshine / California dreamin’ / California dreamin’ / Ohh, let’s go there one day / California dreamin’, ohh / California dreamin’ / Got to get to LA / Friend of mine told me there’s sunshine every day / California dreamin’, ohh.
California Dreamin’ é uma conhecida expressão que geralmente se refere à ideia de um sonho ou uma fantasia associada ao estilo de vida na Califórnia. Está inevitavelmente ligada a uma sensação de nostalgia e desejo de escapar para um lugar de oportunidades, que permita uma vida relaxada e ensolarada. Foi um vislumbre de um lugar assim que tive ao visitar a exposição de João Fonte Santa na Stolen Books.
Lá fora estava, como na música de The Mamas & the Papas[1] (sim, foi daí que reconheceram as estrofes que principiam este texto – sugiro que voltem ao início e leiam agora no ritmo e no tom certo para entrar no espírito), um inverno rigoroso e cinzento; dentro o clima era quente e o sol brilhava. Há até um jardim onde figuras se agrupam, tempo para nos estendermos ao sol e uma ilha que nos parece o destino, o lugar que queremos alcançar para uma folga da rotina.
São sete as pinturas a óleo sobre papel que nos transportam para uma atmosfera própria – não sei se para a Califórnia, mas, certamente, para um lugar remanso, de prazer, de sonho. João Fonte Santa, que se apropria de fotografias que encontra na Internet para executar os seus trabalhos, habituou-nos à incorporação da sua atitude questionadora perante a sociedade atual, sobre o estado das coisas. É reconhecida a sua perspectiva crítica, a utilização de imagens como veículo para reflexões sociológicas. Seja no panorama da pintura, da ilustração ou da BD contemporânea, o artista incorpora uma sensibilidade pós-moderna aliada a uma linguagem estética muito própria.
Nesta exposição, traz, através do poder visual das suas obras, das pinceladas firmes que formam paisagens e corpos, aquilo que me parece uma proposta de libertação de constrangimentos, uma fuga à realidade do dia a dia que nos é imputada. Nos tempos que correm, tudo o que nos prescrevem são diretrizes para um crescimento económico desenfreado, de natureza exploradora e opressora, onde mais trabalho e mais horas de trabalho são apresentadas como única fórmula possível para a prosperidade e uma vida plena. Mas não ali. Naquele universo, vemos figuras despreocupadas, indiferentes até, diria eu, ao sistema em que vivemos. Apresentam-se fleumáticas enquanto mergulham de um submarino, enquanto aterra, aquela que Fernando J. Ribeiro, curador da exposição, nos esclarece ser, a Falcon 9[2].
Quando me posiciono no centro da sala, todas as obras me parecem ter qualquer coisa de convite, uma espécie de imagens de catálogo para uma experiência num lugar que, não se sabendo bem onde – mas também não importa -, tem carácter de refúgio, capaz de proporcionar uma sensação de liberdade do jugo e da automação presente na nossa rotina. É como se João Fonte Santa abrisse brechas, nos mostrasse aquilo que Jacques Rancière denomina de imagens pensativas. Não sendo fotografias, mas sim uma apropriação delas, são “imagens que contêm um pensamento não pensado, um pensamento que não é susceptível de ser atribuído à intenção daquele que a produz e que causa efeito naquela que a vê”[3]. É como se deixasse nas mãos do espectador grande parte da decisão sobre o seu significado crítico. Ali, através de imagens-pinturas, fragmentos-de-sonho, causa-nos o efeito de imersão. Desenreda aquilo que nos prometem poder alcançar. É o portador da chave de uma fantasia, de um lugar secreto, é quem tem as coordenadas de um lugar onde podemos mergulhar numa utopia.
Também o título das pinturas sugere a ideia de imagem. Cada um poderia ser o nome que ficou atribuído ao ficheiro que é a imagem apropriada para a criação destas obras, por exemplo 55841710151026189952129_2038444841_n. É sabido que João Fonte Santa, interessado em investigar pressupostos sociais em amostras daquilo que é agora a nossa sociedade e naquilo que ela se pode vir a transformar – para onde caminha -, pretende deflagrar uma reflexão mais ou menos política, mais ou menos filosófica ou social. E, talvez por isso, e por saber que o sonho americano – a ideia de que as oportunidades estão disponíveis para todos, independentemente da sua origem étnica, religião, status socioeconómico ou classe social – é falso, atravesso a porta, regresso ao inverno cinzento, e não posso deixar de pensar que California Dreamin pode, por um lado, representar aspirações a uma vida de lazer e descontração, mas, por outro, ser um embuste. Ser um vislumbre da terra prometida que está, na verdade, comprometida.
Sabemos que é comum alguém que passa muito tempo ocioso, sem um propósito claro ou sem outras atividades que tragam algum sentido de realização, acabar por se sentir entediado, desmotivado, apático até. É o que estamos? Apáticos? Ou é o que queremos desesperadamente estar? Experienciar alguma apatia relativamente à conjuntura atual. Qualquer pessoa pode atracar o barco neste lugar? Qualquer pessoa pode ambicionar aquela casa na floresta? Apanhar sol em alto-mar refastelado num submarino? Enquanto estas questões e o desejo de escapar à monotonia e melancolia da nossa rotina ficam no ar, não vejo melhor forma de terminar este texto se não da forma que Fernando J. Ribeiro terminou a folha de sala: enquanto a noção de realidade se cingir à mecanização universal, we keep on dreamin. Mas não nos conformemos.
California Dreamin pode ser visitada na Stolen Books até dia 29 de março de 2024.
[1] The Mamas & The Papas foi uma banda formada na Califórnia nos anos 1960, que tem como uma dos temas mais conhecidos California Dreamin.
[2] Indicação na folha de sala da exposição.
[3] Rancière, Jaques. (2022). O Espectador Emancipado . Tradução José Miranda Justo. Orfeu, p. 157.