Half Empty: Diogo Gama e Eduardo Fonseca e Silva no Buraco
Diogo Gama e Eduardo Fonseca e Silva movem-se em sentidos opostos. Diogo é como um vulcão em erupção, experimenta para todas as direções, consome imagens esquecíveis para o mundo exterior, guardando-as e reproduzindo-as. Eduardo é como um rio que desce a montanha, desliza por entre as margens, sabe exatamente para onde quer ir, absorvendo as imagens que encontra pelo caminho. Ambos descobrem na iridescência dos objetos sensações perdidas, músicas esquecidas, espaços suspensos na memória, fantasias descartadas. Os caminhos que percorrem cruzam-se no Buraco com a exposição Half Empty, onde o kitsch é catalisador, metade sonho, metade realidade, metade cute, metade bizarro, metade cheio, metade vazio.
Na prática de cada um há o processo de recolha, um resgate de objetos perdidos, da rua ou de lojas adormecidas, de lugares alheios ao mundo, cobertos de silêncio e poeira. O encontro com estes objetos desencadeia o reaparecimento de memórias, porque o kitsch exalta a tristeza das coisas perdidas. Ou, como escreve Celeste Olalquiaga, “O kitsch é perder-se numa imagem, vaguear por ela adentro como através de um dos espelhos mágicos da Alice no País das Maravilhas, atravessando o limiar de uma dimensão paralela que está sempre lá, um mundo-sombra, um gémeo siamês invisível.”[1]. Em Diogo Gama e Eduardo Fonseca e Silva, há o desejo inconsciente de recuperar o que está perdido, de recuperar o familiar, a casa, o lar. Por isso, vemos a mesa de cabeceira, o saco de aspirador, os ovos, os brinquedos, a faca, os tecidos, o bordado, o ferro de engomar ou a luz de presença.
Em Diogo Gama há busca pelo conforto em materiais quentes, em tradições como o bordado, ou histórias infantis. Há a tentativa de encontro com o familiar e o doméstico, ainda que não assumida ou consciente. Em Half Empty [2] sentimos a penitência do bordado, o cravar da agulha no tecido vezes sem conta e o desenho que nasce desse labor. Diogo acolhe o erro e, não escondendo o verso do tecido, permite que vejamos o desassossego do seu processo. Dentro dos tecidos usa também retalhos de cabedal para construir uma cruz, que é corpo e crucificação. Cria um corpo-cruz, que no lugar do rosto tem uma sola de sapato, que tem olhos de plástico, e um dos olhos guarda água da chuva, ou uma lágrima que se aguenta sem derramar. No centro da cruz é pintado um vulcão em erupção, que explode lava e corações, um vulcão apaixonado, consumido pela fúria. A crucificação como símbolo nobre do sofrimento é onde a alma e o corpo dançam em desespero nos últimos momentos antes da morte. A obra tem como título Temper Tantrums (2024), uma expressão utilizada para descrever as explosões emocionais das crianças. Toda esta simbologia é sufocada pelo carácter naïf com que Diogo apresenta os signos que vemos, numa encenação que faz levitar o peso da cruz.
A relação profunda que estabelece com as imagens que o rodeiam surge de um processo de recolha, apropriação e colagem. Símbolos e composições que lhe marcam o íntimo e que reverberam através de diferentes materiais e suportes. Encontra nos sinos a ressonância que o liga ao mundo espiritual; nos coelhos, a sedução, o íntimo, o toque e a fertilidade. E, neste jogo de apropriações, recupera narrativas esquecidas como a História duma Princesa Macaca, um conto para crianças, popular em Portugal nos anos 1950. O fascínio pela personagem principal repete-se, porque Diogo se revê na Princesa Macaca, uma figura andrógina feminina e confiante. Porém, em One Two One (2023), pinta-a a ser imobilizada por um rapaz, frágil e vulnerável, e em Henry (2024), decapita-a. Diogo, tal como um coelho sorrateiro, sabe como seduzir o espectador. Na primeira obra, o rosa-paixão hipnotiza a cena, na segunda, o bordado sobre o saco de aspirador é tão subtil que se confunde com a própria superfície. Se não olharmos com atenção, a agonia das duas cenas dissipa-se, tornando invisível o que decorre diante dos nossos olhos.
Já com Alarme dos Cruzados (2024), reproduz a imagem de uma empresa de alarmes, comum na freguesia onde vive, em Tower Hamlets, Londres, pintando-a numa parede do Buraco. Sobre um fundo amarelo artificial, o acaso pinta as letras rosa com tonalidades diferentes, transformando o Crusader Alarms numa sopa de significados que dá origem a outras palavras: crua, sad, lar ou arms. Pintar as paredes de um quarto é tornar a casa mais nossa, é marcar a presença que nos estabelece no espaço. Com Diogo Gama, encontrar o calor no exterior torna-se sobrevivência, porque o fogo do vulcão, ainda que enorme, nunca enche as casas estranhas que se encontra quando se muda de país.
Em Eduardo Fonseca e Silva, a busca pelo familiar parece-nos consciente e direcionada, captura o doméstico com os alimentos, pede ajuda aos familiares, retorna a casa, à origem. Em Spirited away (2024), Eduardo dá a mão ao espírito da sua criança, deixando-a guiar até à outra margem. Nessa viagem, abandona o rigor da pintura a que está acostumado e abraça o imprevisível. Aqui, tudo é mãe. Há a mesa de cabeceira que guarda e esconde, a gaiola que protege e prende, o tecido que tapa, a luz que acende. A mãe de Eduardo coseu o tecido à gaiola; o tecido que limpa os pincéis, perdido em casa da mãe, onde já não vive. Dentro da mesa de cabeceira há o bagaço, tanto purificação quanto tentação. Invisível ao olhar dos estranhos, disponível para quem o nota. O espírito da nossa criança sabe sempre quando voltar, prevê sempre quando precisamos de ajuda. Desse regresso rompe o consolo e o calor. Por isso acendemos a luz de presença, para que a criança encontre o caminho até nós. E para que nada disto se veja, nada disto se sinta, Eduardo produz a obra sem compromisso, expondo-a num sítio onde possa passar despercebida, abafada pela imensidão da imagem de Alarme dos Cruzados. Porém, um rio nunca pode escapar à nascente.
Eduardo logo retorna à linguagem habitual, movido pela vontade de transformar o real em imagens bidimensionais, captando a impressão de objetos e alimentos, inserindo-os num cenário quase virtual que nada é, e ao nada pertence. Em Bell Ball Boiled Egg (2024) e Boiled Egg Fortune God (2024), a luz artificial que assombra os ovos pintados retira qualquer prazer e calor do alimento cozinhado. O ovo que é origem, o ovo enquanto promessa, o ovo enquanto incubador. E o amarelo da alcatifa que abraça a pintura, que poderia ser estrela, sol e divino, mas que é amarelo-traidor e falso.
Volta a pintar o ovo em morro por acabar, acabo por morrer (2024). É a tragédia de um ovo mexido abarcado pelo cinza da alcatifa. Um ovo mexido e traiçoeiro, que impede o cavalo branco de atingir o seu potencial. O cavalo branco, símbolo máximo do escapismo, levanta as pernas da frente, afundando as de trás na superfície movediça do ovo. A liberdade do cavalo é só miragem, e o tempo ditado pela mosca anuncia o abismo. Em oposição, pinta Três golfinhos (2024), a imagem perfeita para entreter o espectador, para o iludir do seu verdadeiro significado. Afinal, que mais poderiam ser golfinhos-bananas a não ser aquilo que são? Escondido nas profundezas do inconsciente, o artista sabe-o, mas não desvenda.
É num altar, numa obra conjunta, que reside toda a essência de Half Empty: o artificial, a fantasia, o amor, o abismo, o bizarro, o doméstico, a dor, o fingimento. Neste shrine doméstico, com o título We were so happy it was miserable (2024), há uma acumulação de objetos bizarros e ordinários que trivializam a dor e o sofrimento das mensagens e símbolos que possuem. Toda a decoração serve de camuflagem, desde as flores e corais artificiais, ao coelho de brincar, ou à máscara de Carnaval. Nos restantes objetos há o feitiço da linguagem, e o peso que ela detém. Um disfarce de detalhes, texturas, cores e artificialidade.
O buraco, a cave, o ovo, ou o ninho, possibilitam a incubação, um período de isolamento e cura que promete o renascimento. Aqui, Diogo Gama e Eduardo Fonseca e Silva usam o sedutor e o imediato, aliando-os à vontade de fingir, enganar e divertir o espectador. No Buraco, encontraram uma casa vazia e tentaram preenchê-la, mas a busca pelo lar é uma tarefa infindável que contém a derrota, uma derrota assumida logo no título da mostra, ou na luz fria e artificial que irradia por todas as divisões da exposição. Mas tentaram, e com uma alegria infantil criaram uma zona enfeitiçada que faz dissimular o abismo e o peso dos fantasmas que carregam.
[1] “Kitsch is getting lost in an image, wandering into it as through one of Alice in Wonderland’s magic mirrors, crossing the threshold of a parallel dimension that is always there, a shadow world, an invisible Siamese twin.” Olalquiaga, Celeste. (1998). The Artificial Kingdom. Pantheon, pág. 98.
[2] O desenho bordado surge da ilustração de Mark Matcho para a capa do livro Half Empty, de David Rakoff.