Diana Cerezino: A Hora Azul
Nunca me é fácil encontrar por palavras as formas para descrever o funcionamento da pintura como Diana Cerezino apresenta na exposição individual Com o olhar; Caminhando, na Galeria Plato, em Évora. As pinturas esgueiram-se do fardo da representação e, diante delas, uma exaustão à procura do reconhecível no campo do abstrato. Grelhas eximiamente trabalhadas e preenchidas, numa variação interminável de tons de azul-marinho e castanho taipa, abarreiradas pela máscara da fita de papel. Configuram-se na espessura e expressão da qualidade material da tinta acrílica sobre as superfícies de linho ou algodão. Em cada uma delas, uma complexidade; sinais e vocábulos que não tardei a agarrar com o olhar. Sublinho desde já a pertinência da proposta: estas pinturas não querem ser interpretadas, ou mesmo, lidas. São como um acontecimento luminoso variável, ou ainda, maleável à mesma luz que tanto rompe com o dia e que cai com a noite.
É cada vez mais incomum uma crítica de arte abraçar realmente a experiência da obra e da condição em que me encontrava ao visitar a exposição. É disso que trato. Se deixarmos momentaneamente de parte a “roupa muito velha” e entrarmos nus na galeria, percebemos que não se trata apenas do resultado de um exercício ótico bem trabalhado por Diana Cerezino. Não há uma diferença aparente das qualidades formais: quadrados sobre grelhas, mas se nos dermos à produção do aqui e do ali de cada quadradinho, à forma dessa unidade, tudo se altera. Na realidade, a evocação do tempo do gerúndio é exemplar. O que estou a tentar expor é que a métrica, a clave (previamente estabelecida) parece levantar vagas e ondas, brisas e rajadas na realidade particular de cada pequeno quadrado que compõe as pinturas. Essa unidade é aparentemente extática, mas, com a atenção, dedicação e contemplação atempada, apercebemo-nos que há algo de muito particular e fugaz em cada uma das pinturas. Isto é, perante a luz, a homogeneidade da unidade quebra. É verdadeiramente uma encruzilhada.
Depois de visitar a exposição Com o olhar; caminhando, pensei em como diante das pinturas de Diana Cerezino é necessariamente importante incorporar um olhar redondo, no gerúndio, – do indo típico alentejano – que requer uma atenção afinada. A atenção como a forma mais rara e pura de generosidade (Weil, S. 2004, A Gravidade e a Graça, pp.116–123) num contemporizar à diferença, numa contemporaneidade cada vez mais intolerante.
Das pinturas da Diana Cerezino, apercebi-me que talvez a sua construção não seja muito diferente à forma do silêncio pitagórico da hora azul. Recordei imediatamente uma conversa entre duas jovens mulheres no filme 4 Aventures de Reinette et Mirabelle realizado por Éric Rohmer (1987). No excerto L’Heure Bleue, Reinette considera o exemplo: para uma pessoa que viva numa grande cidade, não há silêncio como o do campo. Ela anseia, sonha com ele. Mas para quem no campo está, esse silêncio não é senão um burburinho: gatos a serandar, pios das aves noturnas, zumbido de insetos, o ranger das árvores com o vento. Se o silêncio da hora azul não se trata destes sussurros de natureza persistente, trata-se de quê? Do gume da madrugada em que, numa fração de segundos, podemos experienciar um silêncio aterrador e sentir a Natureza suster a respiração. Tanto a pintura Terra (2022), como a pintura Pliable – Maleável (2022) são exemplos claros de que há nelas uma reprodução, ou simulação desse acontecimento à medida que a luz do dia vai incidindo sobre elas. O facto curioso é que todos os títulos apontam para gestos relativos ao universo de atender e cuidar um pedaço de terra. Gestualidades, práticas que remetem para um ainda e sempre. No segundo caso, na pintura Pliable – Maleável (2022), parece apontar para lá do limite da grade da tela, isto é, para uma continuidade.
Assim, a celebrar, são as instâncias que coincidem num ponto de vista e um ponto de reunião que permite que as coisas naturais se reconheçam e encadeiem e que, de certa forma, contribuam para a aparente condição transitória de cada uma das pinturas de Diana Cerezino. No final a “ligação entre o olho-lente (científico) e o olho-observador (contemplativo)”, como o descreve o curador da exposição Frederico Vicente, não se diferem imediatamente e a semelhança é relativa ao exercício da atenção como escuta do mundo, mas também como de ação, de maneira a manter vivo e com boa saúde o intuito do olhar. Sophia de Mello Breyner Anderson, traduz tal exercício num poema que diz: “O meu interior é uma atenção voltada para fora / O meu viver escuta.”
Com o olhar; Caminhando, até 15 de março, na Galeria Plato, em Évora.