A ambiguidade do sagrado em Netsuke, de Albano Silva Pereira, no Pavilhão Branco
“É assim que se mostra o sagrado. Emana do mundo obscuro do sexo e da morte, mas é o princípio essencial da vida e a fonte de toda a eficácia, força pronta a descarregar-se e dificilmente isolável, sempre igual a si mesma, perigosa e indispensável ao mesmo tempo.”[1]
Em O Sagrado e o Homem, o sociólogo francês Roger Caillois explora a complexa relação entre as sociedades humanas e o sagrado, que se manifesta nos aspetos mais mundanos da vida, imbuído de uma qualidade imanente que permeia a consciência individual e social. Segundo o autor, na sua natureza ambígua, o sagrado proporciona significado, coerência e estabilidade, albergando simultaneamente elementos de mistério e imprevisibilidade, podendo evocar sentimentos de reverência e medo, atração e repulsa, ordem e caos. Central a esta conceção do sagrado está o papel do tabu e do ritual, onde a intricada ligação entre o sexo, a vida, e a morte, influencia profundamente o comportamento humano, as relações interpessoais, as estruturas sociais e os sistemas de crença. Para Caillois, o sagrado emerge da obscuridade, da tensão entre o sexo, que representa o impulso para a vida, e a morte, o fim enigmático da existência. Esta relação encontra-se particularmente latente em rituais religiosos e profanos de várias culturas, onde a vitalidade do sentimento do sagrado se encontra na dupla relação do sexo com a vida e a morte.
Também o filósofo francês Georges Bataille[2], em Morte e Sensualidade, relaciona o sexo, a morte, a vida e o sagrado. O autor vê o impulso erótico como uma característica primordial da experiência humana, que se estabelece na complexa interação entre êxtase e angústia, emergindo de experiências que ultrapassam limites e desafiam normas. Central nesta conceção está o conceito de transgressão, que envolve o confronto com as limitações da existência e o acesso aos aspetos mais sombrios e irracionais para desafiar convenções morais e sociais. Bataille acreditava que a transgressão era essencial à experiência do erótico e do sagrado, que se manifesta nas facetas mais carnais da vida, na profanidade e no tabu, proporcionando acesso a aspetos mais profundos e reprimidos do Eu.
No seu pensamento revela-se a ambiguidade do erótico, explícita no ato sexual que, segundo o autor, assenta simultaneamente na violência da destruição das identidades individuais e no prazer máximo da união com o outro. De acordo com este entendimento, a união sexual permite vislumbrar a possibilidade de ultrapassar a finitude e descontinuidade da vida e, através dela, regressar à continuidade do próprio ser, do qual o homem foi separado no momento do seu nascimento. O desejo sexual é, assim, sempre o desejo do absoluto e contínuo, que, transcendendo a finitude humana, atinge o domínio do sagrado. Paradoxalmente, este desejo só pode ser realizado através da morte, na dissolução dos seres individuais, ou quando a descontinuidade da vida é superada. Segundo o autor, “(…) a morte não afecta a continuidade da existência, uma vez que é na própria existência que se originam todas as existências separadas; a continuidade da existência é independente da morte e é mesmo comprovada pela morte.”[3]
Parece ser entre estas pontes, entre a vida e a morte, o sexo, o ritual e o sagrado, que a exposição Netsuke, de Albano Silva Pereira, evocativa da cultura e dos rituais japoneses, navega. Patente no Pavilhão Branco até 31 de março, a mostra, com curadoria de Sara Antónia Matos, mergulha no universo do artista, colecionador e curador, cruzando a sua produção fotográfica e fílmica com a sua coleção de objetos, talismãs e artefactos japoneses, reunidos nas suas várias viagens, realizadas ao longo de mais de duas décadas, à Terra do Sol Nascente.
O título da exposição remete para os pequenos ornamentos esculpidos, geralmente feitos em marfim ou madeira, que, durante o período Edo (1603 – 1868), período de significativo desenvolvimento cultural, económico e social no Japão, que viu florescer o teatro kabuki, as gravuras em madeira ukiyo-e e a poesia haiku, eram utilizados como presilhas para fixar pequenas bolsas nos obi, cintos, dos quimonos. Para além desta utilização, os netsuke permitiam também guardar e transportar uma miríade de objetos, como cinzeiros, tabaco, compassos, relógios de sol, ábacos, pousa-pincéis, armas de fogo e até gaiolas para pirilampos. Representando frequentemente animais, criaturas míticas, divindades, personagens do folclore e da literatura, os netsuke foram-se tornando cada vez mais elaborados e ornamentados, adquirindo também um significado simbólico e cultural, sendo-lhes atribuído o poder místico dos talismãs.
Vamos encontrando muitos destes pequenos objetos ao longo da exposição, mas, ainda antes de entrarmos no espaço expositivo, somos recebidos por um longo rolo japonês, com vários samurai, os guerreiros do Japão pré-moderno que, mais tarde, constituíram a classe militar dominante, casta social mais elevada do período Edo.
Entrando no Pavilhão Branco, encadeados pela sua luminosidade cristalina, instintivamente procuramos a origem de um som que se confunde com aquele característico dos jardins do Palácio Pimenta. O murmúrio suave de água a correr, um padrão rítmico, fluxo líquido constante a percorrer os seixos, o zumbido das cigarras e o coaxar das rãs noturnas. Encontramos um cubo negro. Abrimos a cortina e deixamo-nos engolir pela escuridão. Ao fundo da sala, lentamente, pouco a pouco, vão-se revelando tons de cinzento, distinguindo-se algumas formas e movimentos. São precisos alguns minutos para que os nossos olhos se ajustem e consigamos aceder ao Ensaio sobre o filme Os Amantes Crucificados de Kenji Mizoguchi (2023). Sublinha-se aqui o modo como, enquanto tecnologia da percepção, o cinema constrói um mundo de luz, ritmo e som, envolvendo por completo os nossos sentidos. A sua recepção não só envolve o corpo, como revela as nossas próprias limitações físicas. De facto, para além da cena em reprodução, onde, entre a atração e a repulsa, a perturbação e a sedução, o prazer e o tabu, um samurai e uma geisha se envolvem, é também pelo modo como está instalado, exposto, que este filme de Albano Silva Pereira propicia uma experiência sensorial, profundamente sensual e envolvente, que nos incita a atentar a cada som e a cada gesto, aumentando também assim a consciência do nosso próprio corpo, a nossa ligação ao espaço e ao tempo, que ali parece suspender-se, estender-se, marcado apenas pelos 7’38’’ que intercalam o início e o fim do filme.
Regressamos à luz inebriante e, no piso superior, entramos na sala apelidada Tea Rituals – Rituais de chá e de saké, onde vemos fotografias de casamentos tradicionais japoneses justapostas com o fascínio provocador das representações shunga, a arte erótica da tradicional xilogravura japonesa ukiyo-e. Pequenas e delicadas esculturas cerâmicas, representando diversas posições sexuais no centro do altar, contrastam com as eretas esculturas fálicas de madeira, que remetem para os festivais xintoístas em que o pénis é celebrado publicamente, enquanto símbolo de prosperidade e fertilidade, venerado também pela sua associação à harmonia conjugal, como o Kanamara Matsuri em Kawasaki e o Hōnen Matsuri em Komaki. No centro da sala, duas vitrines estão repletas de objetos, livros, desenhos, jornais, máscaras, fotografias, postais, netsuke, múltiplos kanzashi (ganchos de cabelo) e gravuras shunga, intercaladas por representações florais e botânicas – traduzida literalmente, a palavra japonesa shunga significa imagem da primavera, sendo a primavera utilizada comummente como eufemismo para sexo.
Na última sala do piso superior do Pavilhão, S. Rituals – Sala Shunga, as ruas de Tóquio, Kyoto ou Hiroshima, capturadas pela lente fotográfica de Albano Silva Pereira, são enquadradas por altares semelhantes aos Butsudan, comummente encontrados nos templos e casas de cultura budista no Japão, perante os quais se comemoram e homenageiam os antepassados familiares. Aqui, os butsudan, tal como a mesa que se encontra no centro da sala, são recheados por múltiplos objetos e documentos históricos, fotografias de geishas, lutadores de sumō e militares, e utensílios específicos do ritual japonês do chá. Com raízes no budismo zen e influenciada pelos princípios do wabi-sabi, a apreciação da imperfeição e da impermanência, no Japão, a cerimónia do chá, ou chanoyu, personifica a simplicidade, a tranquilidade e a atenção plena. A mesma caracteriza-se pela estética minimalista e uma ênfase nos materiais naturais, como a madeira, o bambu e o barro. A beleza dos objetos e o ambiente tranquilo e luminoso da sala de chá, análogo àquela da exposição, criam uma atmosfera de serenidade e contenção, propícia a um diálogo contemplativo com o sagrado, oferecendo assim uma perspetiva contrastante sobre a ambiguidade do sagrado e do erótico. De facto, na prática do chanoyu, o ato de preparar, servir e beber o chá é elevado a uma forma de comunhão ritualística com o divino, onde se procura e reconhece o caráter sagrado de cada momento e de cada gesto. Nessa experiência partilhada de comunhão, os sentidos envolvem-se de maneira subtil mas profunda, transcendendo as fronteiras do Eu.
É também nesta sala, num espaço anterior, que descobrimos, entre paredes, um ecrã preto. Um olhar menos atento julgá-lo-ia desligado. Ainda assim, demoramo-nos, e à medida que a nossa atenção se ajusta, emergem detalhes subtis. Os corpos dos amantes vão-se revelando. Ensaio sobre o filme O Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima (2024), homenageia o filme de 1977 que explora a relação intensa e obsessiva entre Sada Abe, uma antiga prostituta, e o seu patrão, no Japão pré II Guerra Mundial. Esbatendo as linhas entre prazer e dor, amor e violência, o filme mergulha nas profundezas mais obscuras do desejo humano e nas consequências da paixão desenfreada, explorando a sacralidade e o tabu em torno da sexualidade, particularmente no contexto da sociedade tradicional japonesa. Os atos sexuais são aí retratados na ambiguidade do sagrado e do erótico, com as personagens a envolverem-se em rituais de desejo que esbatem as fronteiras entre prazer e transgressão, e onde os amantes encontram na morte a união eterna.
É imbuídos por esta experiência ambígua do erótico e do sagrado, que, terminando o nosso percurso, no piso inferior, somos confrontados com a mortalidade e os limites da existência. No centro da sala encontra-se uma mota japonesa, uma Honda 900 SBR, acidentada. Foi nela que, em 2020, o artista sofreu um acidente que quase lhe tirou a vida. Na parede, Still Alive (2020), auto-retrato do artista, conjunto de 9 fotografias tiradas durante o seu período de permanência no hospital. No rescaldo de um acidente que ameaçou a sua vida, o artista confronta a morte com uma mistura de vulnerabilidade e resiliência, destacando a tensão inerente e o delicado equilíbrio entre criação e destruição.
Na exploração do significado e da ressonância simbólica dos inúmeros e distintos objetos presentes em Netsuke, que na sua fisicalidade se veem envoltos em luzes e sombras veladas, é intensificada a qualidade misteriosa, que oculta tanto quanto revela, da exposição. Seduzindo os sentidos, suscitando um fascínio contido, mas hipnotizante, revela-se o olhar singular, refinado e subtil, de Albano Silva Pereira. Estabelecida na complexa e ambígua interação entre o excesso e a contenção, o prazer e o tabu, a ocultação e o desvelamento, a exposição parece espelhar as complexidades do desejo e a essência enigmática do sagrado, estabelecido entre o sexo, o ritual, a vida e a morte.
Netsuke de Albano Silva Pereira, com curadoria de Sara Antónia Matos, está patente no Pavilhão Branco até 31 de março de 2024.
[1] Caillois, Roger (1988). O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 149.
[2] Em 1937, Roger Caillois e Georges Bataille fundaram a “Collège de Sociologie”, grupo de intelectuais franceses de diversas origens e disciplinas, que se reuniram para reavaliar a importância do sagrado, valorizando o lado não-racional, instintivo, na experiência social humana.
[3] No original: “(…) death does not affect the continuity of existence, since in existence itself all separate existences originate; continuity of existence is independent of death and is even proved by death.” Bataille, Georges. (1962). Death and Sensuality. New York: Walker and Company, pp. 20-21.