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Rosas, de Lea Managil

Símbolo omnipresente na história da cultura ocidental, a rosa surge como enigma e representação da duplicidade da natureza e do que muitos poderiam designar por “condição feminina”. Ou seja, neste contexto cultural e mitológico, uma rosa não é uma flor. É isso e qualquer outra coisa, por ventura mais profunda, tão bela quanto letal, tão pura quanto venal.

Uma rosa é um espinho cravado no coração; a beleza gótica da mácula; a suavidade de uma pétala que soçobra ao tempo e se torna áspera; o esplendor de uma criação que só a arte consegue imortalizar, porque a rosa é o deslumbre antes da vida murcha, seca, extinta. Este é o assombro metafísico da rosa – uma matéria em devir, simultaneamente palavra, conto, lenda, forma, memória, imagem e objeto.

Uma rosa morta, pendendo da jarra, sem vigor nem cor. Pétalas caídas sobre a mesa. Um espinho – um pico – ferrugento e aguçado – tétano em formação. Um pão que se converte em rosas no regaço da rainha: “são rosas, senhor, são rosas” – e, por isso, a rosa será também milagre, fantasia, magia, bruxedo.

Na exposição Rosas, Lea Managil regressa a esse mistério simultaneamente vegetal e humano da rosa, encontrando nela não uma forma, mas uma ideia da construção de símbolos e atmosferas retiradas dum sonho difuso ou dum conto gótico. Todas as intervenções parecem aludir a esse período medieval: os arcos em ogiva, a lenda da Rainha Santa Isabel, as velas, a unha grande duma lenda colhida das trevas, que esgaravata a fertilidade dos frutos, qual estrofe roubada a Beowulf, qual garra cravada no corpo da Bela pelo Monstro.  Nessa colisão cultural – nesse enorme reator nuclear em expansão que é a contemporaneidade –, a rosa, se pode ser tudo, pode ser nada e, por isso mesmo, o que se quiser, livremente, despudoradamente, entregue aos devaneios da artista e ao potencial incandescente dos sonhos. Porque, recorde-se, se a rosa é romance e decadência, sentido e inanidade, qualquer substância sem nome ou qualquer nome sem substância, então é nada e esvaziamento – tal como Umberto Eco discorreu em O Nome da Rosa, um título poético, místico, que não revela o que quer que seja sobre o livro que apresenta, porque perdeu norte, depois da pós-modernidade e da colisão de signos, significados, hierarquias e ordens, e, portanto, mostra-se livre para ser tudo o que leitor e o criador desejarem ou intuírem. Cabe à artista apontar uma nova definição para a rosa, localizando-a dentro do pampsiquismo que sintoniza todas as mentes subjetivas naturais, humanas e não-humanas, inertes e orgânicas, num único comprimento de onda.

Como nas várias exposições anteriores realizadas por Lea Managil, há algo de cenográfico em Rosas: as sombras por detrás da porta em epóxi, a luz controlada das peças, a performance do tempo, os objetos à espera de serem usados e manipulados. Tudo parece aguardar uma ação por desenrolar, que será tão só mental ou introspetiva. Encontramos ecos operáticos de Tale of Rusalka, a mesma materialidade diáfana e mítica de We’ll feed the dream as long as we can e os pequenos gestos já experimentados de Scratch. Esta continuidade reconforta-nos e diz-nos estarmos perante uma marca.

Não há vontade representativa. Não há nenhuma espécie de alusão fisionómica, taxonómica ou descritiva da rosa. Neste sono langoroso, o tempo pinga das velas negras, escorre e acumula-se nos interstícios dos objetos e do chão. É coisa febril, fictícia – o artifício de um mito, ou o artifício das memórias coletivas condensadas num único espaço.

O detalhe e a minúcia da construção requerem atenção para chegar ao assombro da descoberta. A plasticidade das obras alude a uma qualidade obscura, como se a arte resultasse de um exercício criptográfico que requer decomposição, imaginação e cultura para se chegar ao âmago da sua verdade. Cimento, epóxi, látex e silicone fazem parte desta construção que estipula uma outra natureza – O Novo Fruto pejado de espinhos, reluzente com o tratamento de vaselina líquida: a beleza encontrada nos materiais industriais, a vida injetada em compósitos sintéticos.

Rosas, de Lea Managil, está patente na Zaratan – Arte Contemporânea até 16 de março, com texto de Tomas Camillis.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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