Top

A arte enquanto lugar de sutura: Catarse de Filipe Cortez na NO.NO

A memória, de entre as suas múltiplas dimensões, vê-se como um processo afetivo de leitura do passado, feito no tempo presente, que, aliado a uma consciência de perda futura, leva à conservação, arquivo e registo paradoxal na tentativa de impedir a passagem do tempo – permitindo a presença do passado no presente como garantia de futuro. Reconhece-se como projeto de recuperação impossível, na procura por algo que está já conscientemente perdido no seu contexto, e que apenas nos permite ter uma perceção do passado obtida através dos sentidos, que dão resposta à sua necessidade quase sempre material e ao seu peso imagético mais ou menos concreto. É condição essencial da natureza humana: sem memória não há inteligência, há apenas perda, caos e estagnação.

O trabalho da memória tem vindo a ser uma constante na obra de Filipe Cortez. Aliado à indissociável noção de tempo, Cortez tem-se dedicado nas últimas décadas a explorar as relações desta ideia com os espaços-lugares por onde tem passado, numa relação íntima com a arquitetura – e a sua decadência –, materializando-as em obras de uma capacidade plástica ímpar e diferenciadora. Não partindo de uma ambição arqueológica ou etnográfica, é através de diversas formas de casting – que vão desde moldes em látex ou silicone que recolhem vestígios e texturas de paredes, pavimentos, detalhes ou objetos – que Cortez imortaliza a memória desses espaços, cristalizando o passado, a passagem do tempo. Apresenta uma perspetiva arquivística e quase taxidérmica na sua prática multidisciplinar, que documenta camadas e narrativas, através da atenção a vestígios e marcas do que é efémero ou em via de esquecimento, olhando para um edifício ou cidade como reflexo da evolução social – uma também forma de reconhecimento do papel propedêutico e museológico que o património urbano revela para a sociedade contemporânea, no pensamento de Françoise Choay[1]. Conserva e recupera simbolicamente, através da sua prática artística, a memória destes lugares num tempo-espaço distinto – o lugar de memória definido por Pierre Nora[2], que é tanto o espaço expositivo quanto o espaço mental do espectador que o observa e retém – numa ação de construção-desconstrução que tem tanto de romântica e poética quanto de política.

Catarse, a terceira exposição individual de Filipe Cortez na NO.NO Gallery, assume-se como “a exposição de uma transição”[3] entre tempos, interesses, técnicas e temáticas. Essa transição é assumida quer pelo texto que acompanha a exposição, da autoria de Pedro Gadanho, quer pelo percurso de visita a que a curadoria nos convida, desenvolvendo-se todo o projeto na interseção entre passado-presente e apontando caminho para um futuro – cada vez mais íntimo e pessoal.

A obra Sem Título (Memory After Memory) representa esse amplo interesse que Cortez tem vindo a desenvolver pela memória arquitetónica, marcado pela sobreposição de vestígios e texturas numa composição pictórica multidimensional. Por sua vez, as séries Fóssil e Sem Título (Through the Wall) são manifestas da transição para novas investigações técnicas no seu trabalho, através do decalque e transposição, aproximando-se progressivamente de uma esfera mais privada, pessoal e interna – o espaço do seu atelier, que vinha a ser explorado desde a exposição Studio 94 (curadoria de Nuno Crespo), na mesma galeria. São ilustrativos de uma fase intermédia, que trabalha a usual acumulação de resíduos, agora enquanto processo aleatório e não de composição, conjuntamente com o progressivo abandono da tela e da sua substituição por um simulacro em resina. Em direção a algo mais profundo.

Se já trabalhava o espaço arquitetónico enquanto corpo, explorando a sua tinta-pele enquanto símbolo de transições e mutações temporais – veja-se também a exposição Ecside ou as obras das séries Skins e Pele da Tela –, agora adentra-se e vai às entranhas – já não de um espaço, mas do seu próprio corpo enquanto lugar. Tenta aproximar o corpo humano à matéria da pintura e da tela, numa reflexão que incide sobre um episódio íntimo e pessoal que o levou à necessidade de uma intervenção cirúrgica de urgência e o despertou para o choque de uma mudança iminente. A série Canvas (Through the Wall) funciona assim como uma forma de catarse, um processo mnemónico e terapêutico de recuperação de um trauma, de descarga emocional, que procura a cura desta vivência pessoal, nas suas várias camadas, mais ou menos profundas. É da intervenção intencional sobre a tela e da sua posterior moldagem, que resulta a tiragem de positivos em resina de poliuretano altamente detalhados – que nos fazem duvidar da presença ou não dos verdadeiros materiais que lhe deram forma e textura. Nestes Cortez congela e imortaliza já não uma acumulação do real, mas uma verdadeira ação interventiva que quer colocar à vista uma realidade interior – que a visceralidade de algumas das peças, marcadas pelo esventrar, perfurar e agrafar da tela, ilustram.

Permanece, pois, a exploração estética da decadência e degradação, não de uma construção ou espaço, mas de um corpo que é alvo da passagem do tempo, que envelhece e é marcado pelos acontecimentos que o moldam física e psicologicamente – e que a gestualidade e performatividade inerentes à prática artística de Cortez tão bem exemplificam, enquanto condição da sua existência. E se antes um forte jogo pictórico caracterizava a sua obra, este novo caminho parece indicar-nos uma abordagem diferente que remete a uma certa pureza higiénica e cirúrgica, em termos materiais – talvez fruto da vivência na origem do processo catártico que é aqui materializado.

Esta direção técnica e temática para que o trabalho de Cortez aponta traz ainda à memória a necessidade permanente de lembrar de esquecer enquanto exercício fundamental à pacificação e reconciliação sociais – e neste caso, pessoais e íntimas. Só o esquecimento permite restabelecer a ordem e é a memória quem tem um papel fundamental na extinção do sofrimento através do esquecer selecionado e do seu papel terapêutico, que permitem intencionalmente converter e resolver os traumas – esquecimento e memória enquanto instrumentos políticos com fundo moral e redentor.

Marc Guillaume, em A Política do Património[4], refere o papel dos monumentos enquanto objetos de sutura, que possibilitam estabelecer a ponte e assumir, simultaneamente, uma função reparadora e um papel pedagógico que não nos permite esquecer, mas sim reconciliar. Filipe Cortez, quer numa esfera mais pública quanto íntima, faz das suas obras – da sua arte – esses monumentos. Esse lugar de sutura: de reconciliação entre passado-presente-futuro.

Catarse, de Filipe Cortez, pode ser vista até 16 de março, na NO.NO Gallery, em Lisboa.

 

[1] Choay, F. (2010). Alegoria do Património. Edições 70.
[2] Nora, P. (1993). Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História 10, 7-28.
[3] Gadanho, P. (2023). Filipe Cortez/Catarse [Folha de sala].
[4] Guillaume, M. (2003). A Política do Património. Campo das Letras.

Mediador Cultural, Curador e Investigador. Mestre em História e Patrimónios e Licenciado em Património Cultural, pela Universidade do Algarve. É Bolseiro de Investigação no DINÂMIA'CET-ISCTE. Tem-se dedicado sobretudo ao trabalho de Mediação Cultural, de Educação Patrimonial e de Gestão de Projetos Culturais, com foco no cruzamento arte-cultura-educação. Tem participado em várias iniciativas nacionais e internacionais ligadas a projetos culturais na área das artes e inovação, como o ILUCIDARE, European Creative Rooftop Network, e Faro 2027. Foi um dos Jovens Embaixadores MACE 2022 e tem especial interesse pela criação contemporânea, estando a concluir a pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA FCSH. Acredita que 'há um futuro no passado'!

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)