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Trouble in Paradise de João Bragança Gil

Falar sobre os Açores é discorrer sobre uma ideia romantizada de Natureza: as lagoas, os campos verdejantes, as vacas que pastoreiam sobre paisagens deslumbrantes, o oceano, tão perto, tão imenso e profundo, o património geológico, as termas de águas quentes e lamas ricas… É esta a imagem que a política, o marketing e o capital vieram imprimindo no nosso ideário, acreditando que este idílio bucólico está ao nosso alcance, que uma certa ideia de natureza permanece intocada, virgem, pura, quando, na verdade, século após século, tudo foi construído, artificializado, submetido à vontade humana, sempre tão ardilosa e proverbial de engenho. Os solos foram lixiviados, as terras volvidas e revolvidas, as águas mudaram de cor e o território acomodado aos desejos do turismo, da demografia, da indústria militar, etc. 

Na verdade, fazem parte da memória coletiva as notícias em meios de comunicação social mundiais sobre a base militar das Lajes, usada como destacamento militar americano, charneira no confronto este-oeste da Guerra Fria e lugar cimeiro na intervenção militar no Iraque.

Do continente, imaginamos esse território insular, oceânico. As brumas marítimas sobre as ilhas, que se levantam, intermitentes, para deixar ver algo aparentemente maravilhoso. Um véu por sobre a flor, que, quando se desvela, percebemos que é artificial, plástica, demasiado falsa e garrida para ser naturalmente bela, e, no entanto, nesse seu caráter factício, não deixa de fascinar e tecer vislumbres de glória numa memória também ela artificializada. 

Trouble in Paradise, de João Bragança Gil, entende-se como uma investigação sobre as tecnologias de controlo e superação da Natureza e da vida selvagem neste território açoriano, depois de uma residência e de um contacto direto com o arquipélago em 2022. O betão, o aço, o alcatrão e a ortogonalidade das construções contrastam com essa imagem mental que guardamos (ou fabricámos) dos Açores. O título é claro: o Paraíso está comprometido. 

Cada documento fotográfico pode ser visto como uma prova forense. Sob as fotografias, a extensa pesquisa registada em palavras por Gil confere uma ambiência noir atípica, como se estivéssemos perante um crime sem vítimas nem culpados. Porque o que está em causa é uma construção coletiva, e a responsabilidade, essa, num país sem accountability ou apuração de culpas, morre só e por apurar: um descuido, uma necessidade infeliz. Aqui, a fotografia serve de prova – paradoxalmente aliada da causa comum e do grande capital de vigilância.

Neste contexto, está-se perante um projeto profundamente crítico e político, em que a estética investigativa gizada pelo artista, com os seus métodos e as suas ferramentas científicas quase matemáticas, desconstrói as estruturas de poder, sejam elas económicas, militares ou sociais. 

Dito isto, apesar da microescala, as conclusões a que se pode chegar finda esta investigação fazem parte de um entorno global facilmente destacável: as políticas neoliberais, a voragem do capital, a ânsia do poder e do controlo geoestratégico, o turismo galopante, o antropocentrismo, que apesar de ser cada vez mais contestado pelos novos materialismos e pela filosofia contemporânea, continua a servir de desiderato a muitas políticas locais e globais. A vizinhança entre o natural e o artificial que o artista força, expondo o assombro e os fenómenos da natureza ao lado das edificações apolíneas do ser humano, registam essa difícil coexistência, cheia de tensões, contradições e cegueira. 

Trouble in Paradise, de João Bragança Gil, está patente no Projectspace das galerias Jahn und Jahn e Encounter, em Lisboa, até 23 de março.

Trans Soleil, de Alexi Tsioris, pode ser vista paralelamente, no espaço de ambas as galerias, uma exposição que dá a conhecer a abordagem pictórica de Tsioris, o caráter inesgotável da pintura e da arte, bem como a dissolução de barreiras entre media e práticas artísticas, nomeadamente as pontes que o artista grego constrói entre pintura e escultura, escultura e desenho, desenho e caligrafia. Esta é uma exposição com a curadoria de Alexander Caspari (Encounter) e Tim Geissler (Jahn und Jahn).

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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