Expurgar Papel: Reconstruindo Narrativas do Colonialismo de Carla Filipe na Escola de Artes da UCP
Em exibição na Sala de Exposições da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (Porto), a exposição Expurgar Papel: Reconstruindo Narrativas do Colonialismo da artista Carla Filipe (1973), insere-se no projeto investigativo Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões, que pretende fornecer novos questionamentos sobre o modo como a História é construída e como podemos, de forma crítica, criar novos mecanismos para a ler e interpretar. Com curadoria da investigadora brasileira Lilia Schwarcz e de Nuno Crespo, em parceria com as universidades de São Paulo, no Brasil, e de Princeton, nos Estados Unidos, o ciclo pretende – através do encontro com artistas, ativistas e intelectuais –promover uma reflexão sobre as omissões e os silêncios que a História mantém, não propondo uma reescrita da mesma mas uma abordagem crítica, mediante a criação de um espaço de debate para pensar as narrativas históricas e o modo como artistas de diferentes geografias e culturas têm agido no alargamento e transformação da designada história oficial.
Desafiando e alterando paradigmas de construção de narrativas históricas, a exposição Expurgar Papel reafirma a importância da arte enquanto dispositivo para refletir, questionar e compreender a História através de um corpo de trabalho que nos revela imagens enquanto lugares de poder e de opressão do colonialismo europeu. Dando continuidade à série de trabalhos intitulada Mastigar papel mastigado, o desejo de compreender o velho continente para cuspir a sua história, iniciada em 2014 durante a residência artística de Carla Filipe em Antuérpia, a exposição promove uma reflexão sobre a relação subjetiva do espectador com testemunhos visuais e sobre o poder da imagem e da palavra, numa atitude não-passiva da artista perante a sua pulsão de arquivo. A partir da apropriação de palavras, objetos e documentos, e recorrendo à colagem, descolagem e recortes – técnicas que pressupõem uma ação, um gesto, uma performatividade –, Carla Filipe descontextualiza signos visuais e textuais, criando sucessivas camadas de informação e leituras, numa lógica de reconstrução e manipulação da memória, identidade e História, a partir das quais dá voz a silêncios e omissões.
Recebendo o visitante, em exibição numa parede branca, a obra Mastigar papel mastigado e cuspir o velho continente-Imperial Zoo (2014) antecede, como eco visual, a instalação Expurgar papel (2020-2023), posteriormente revelada no interior da Sala de Exposições. Projetando uma abordagem de cariz histórico, Carla Filipe questiona – face à persistência de uma linguagem e de marcadores culturais imperialistas – a indissociabilidade entre a ideia de História e de arquivo histórico do ocidente e os crimes do colonialismo. Recusando e subvertendo tal arquivo, numa inversão do jogo de poderes, o conjunto de suportes utilizados no desenho/colagem Imperial Zoo – cartões, recortes de revistas e anúncios publicitários adquiridos em alfarrabistas belgas – promove um diálogo crítico sobre o significado cultural dos jardins zoológicos no continente europeu e sobre as relações entre humanos e animais, nestes espaços onde o colonialismo é evidente. Através de um trabalho de campo e pesquisa sobre o jardim zoológico de Antuérpia, fundado em 1843 por Leopoldo I, enquanto local público que incorpora ideias coloniais e imperiais belgas do século XIX, Carla Filipe reflete sobre a função e arquitetura deste espaço a partir da coleção de espécies de animais provenientes de África e da Ásia. A obra promove, ainda, uma leitura crítica sobre a realização de zoos humanos, enquanto une tentative de legitimize the colonization e exotismo, ao apresentar imagens de exposições universais sobre povos indígenas financiadas pelo governo belga, sem esquecer as explorações humanas e atos de genocídios praticados por Leopoldo II no Estado Livre do Congo, propriedade particular do monarca, questionando-nos: How is possibel call a freedmon state colonialized? A importância e transversalidade da linguagem enquanto suporte reflete-se nas frases escritas pela artista, que, como slogans, legendas e reflexões, nos confrontam e complementam os restantes elementos visuais da obra, numa mistura de idiomas – português, inglês e francês – que é recorrente no trabalho de Filipe. A crítica à indústria publicitária, ao seu legado e visão imperialistas são igualmente denunciados pela presença de anúncios de produtos provenientes das colónias – como o chocolate e o tabaco – com recurso ao uso de animais, sendo de destacar a inclusão de sacos de açúcar recolhidos pela artista num café do bairro português de Antuérpia, e cujo slogan – que subsiste nos dias de hoje – alude ao nosso passado colonial.
O título da série Mastigar papel mastigado e cuspir o velho continente, na qual se inclui a obra em exibição, reflete, nas palavras da artista, o seu enjoo perante a ideia de um arquivo de registo europeísta que deve ser cristalizado, e que desventra, numa linha ténue entre o respeito e desrespeito, numa ação que se repete na instalação Expurgar papel. Seguindo a mesma linguagem reivindicativa e recorrendo à documentação do século XVIII até à década de 70 do século XX (período do PREC), a artista habita o espaço expositivo com uma arquitetura efémera, construída por diversos suportes de diferentes dimensões – sobretudo capas de arquivos e de álbuns fotográficos – que, suspensos do teto (alguns pendendo quase até ao chão) e estampados com documentos e iconografia variada, contornamos, observamos e lemos de vários ângulos e até do seu reverso. O desenho instalativo do conjunto e a deslocação física e visual que proporciona criam um percurso e espaço habitável que envolve o visitante, mergulhando-o numa experiência imersiva. Qual documento informativo e sem hierarquia, a instalação reúne diferentes cronologias e geografias, em que episódios históricos e acontecimentos políticos adquirem uma nova atualidade, convidando à reflexão. Refletindo sobre transformações políticas, económicas, sociais e culturais do passado e do presente, textos e materiais de comunicação de arquivos são retrabalhados, comentados e metamorfoseados pela imaginação da artista, adquirindo uma nova vida em 28 composições que desafiam preconceitos e leituras pré-fabricadas da História. “Todos estes desenhos surgem de um desejo da artista por compreender a História do continente através do gesto artístico, que não é igual à compreensão de um historiador, e como esta ideia do cuspir, do expurgar o papel, sai do corpo do artista”.[1]
A dimensão política, ativista e histórico-social do trabalho de Carla Filipe é-nos revelada ao longo dos 28 elementos que compõem a instalação, e que, como bandeiras ou faixas, desvendam num trabalho de sobreposições e camadas as lutas emancipadoras das mulheres, dos migrantes e dos desempregados; os traumas da ditadura, da pobreza e da guerra colonial; o direito à educação e habitação; e denunciam o racismo e machismo. Recorrendo à colagem enquanto metodologia, lemos as diversas camadas de narrativa e informação através de fotografias, recortes de jornais, envelopes, postais, papéis de fantasia, e um infindável conjunto de materiais[2] cuja fragilidade nos remete para a própria fragilidade do arquivo enquanto “corpus sujeito a contínuas interrogações”[3]. Mais do que a apropriação de palavras ou documentos, Carla Filipe constrói em Expurgar papel um novo arquivo enquanto “estratégia de resistência a uma amnésia coletiva que europeíza o país, diluindo a sua memória”[4], numa mostra” fundamental para o diálogo crítico sobre a História europeia e para compreender as nuances do passado que continuam a moldar o nosso presente”[5].
[1] Citação da intervenção de Nuno Crespo durante a sessão inaugural da exposição.
[2] De destacar a inclusão de cabelo enquanto arquivo (ADN).
[3] LAPA, Pedro. Arquivo, Testemunho e Profanação. In Carla Filipe: da cauda à cabeça. Berlim, Lisboa: Archive Books, Museu Coleção Berardo, 2014, p. 14.
[4] FERNANDES, João. Carla Filipe: A revolução como padrão. In Carla Filipe: Amanhã não há arte. Lisboa, Fundação EDP, 2019, p. 29.
[5] Citação da intervenção de Nuno Crespo.