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Ladainhas e percussão na Appleton

As duas exposições presentes na Appleton, A Torch Song de Isabel Cordovil e Mirror Drumming de João Biscainho partem, sem coordenação aparente, dos mesmos dois conceitos: fé como parte da natureza humana e a tecnologia da vigilância.

Isabel Cordovil, em A Torch Song, parte de lugares sacralizados como Fátima e uma igreja ortodoxa grega em momento de missa, Meca na altura da peregrinação, uma cerimónia a Krishna na Índia, o Muro das Lamentações vazio, o parque Gondwana Namib onde se procuram recuperar espécies protegidas, um local de possível aparecimento da aurora boreal na Finlândia, a estação de lançamento de aparelhos aeroespaciais da empresa Space X, e um local no Nevada de avistamento de extraterrestres, para representar a fé humana, em todas as suas vertentes.

O espaço expositivo é pensado na quase ausência de luz, direcionado para pequenas televisões antigas onde passam diversas imagens e de onde ouvimos uma canção de ladainhas sobrepostas. Comecemos pelo critério de seleção do que é sacro. Se as representações são visuais no caso cristão, com imagens de Nossa Senhora ou ícones ortodoxos, e dos hindus, com uma representação de Krishna, os espaços judaicos e islâmicos mostram como é da cerimónia que se faz a crença. A isso se acrescentam dedicações à natureza, como o fenómeno da aurora boreal, cuja beleza pode ser ela própria divinizada, ou as espécies que circulam na reserva da Namíbia. Por fim, a fé na tecnologia representada pela Space X ou o ceticismo e a conspiração, no Nevada.

A esperança, a desumanização do corpo pelas máquinas e a vigilância, com câmaras que dão acesso a todos esses momentos, são temas realçados pela folha de sala. O que me chama a atenção, no entanto, é a simultaneidade, aliás confirmada pela sobreposição de melodias como objeto expositivo, de uma experiência universal e, sobretudo, a fé, o abandono, a dedicação, o ritual de devoção. Ressurge a velha questão sobre a necessidade da humanidade de crer, seja sob que formato for.

Se muitas vezes a religião é um pretexto para o político, Cordovil aborda aqui a fé propriamente dita, na sua relação institucional, no momento cerimonial e suas diversas liturgias. Tal como o culto é feito da importância concedida à palavra, também é recheado de códigos culturais percetíveis e significativos aos olhos dos que pertencem a esta comunidade. É, afinal, por isso que os locais sagrados o são. A inclusão do fascínio com fenómenos naturais, tecnológicos ou conspirativos confere um sentido lato importante ao conceito de crença.

O facto de podermos aceder aos diversos formatos destes cerimoniais em direto é a novidade da simultaneidade, trazida pela globalização e a tecnologia, assistindo a um ritual emotivo, nem que seja com propósitos estéticos. Mas esse acesso público pressupõe o fim da intimidade com o espaço.

No andar de cima, João Biscainho retoma a ideia de vigilância com Mirror Drumming, bem como as possibilidades da tecnologia avançada se proteger do imaterial, que forma as redes de acesso à internet. Assim, alternam-se fotografias de câmaras privadas de ecos que fazem experiências transmissão de frequências eletromagnéticas, com pinturas a grafeno, material que impede a intrusão tecnológica. Entre estas imagens, está um maxilar de cobre mergulhado em leite ligado a uma placa do mesmo material, a propósito de investigações em que foi possível aceder aos pensamentos de indivíduos através das frequências de neuro-vibrações do maxilar inferior. A obra traz-nos uma visão distópica em que seria necessário adicionar ruído ao maxilar, para evitar o conhecimento externo do que é nosso.

A proteção contra a vigilância e o controlo perpassa toda a exposição, mas não abandona a relação da imagem com o som, através de vários tambores-espelho. A construção de Biscainho é feita de um altifalante dentro de um tambor, coberto de um espelho de máxima qualidade, num espaço expositivo branco e cinzento. A esta imagem silenciosa acrescenta-se o som de frases de percussão gravadas pelo artista e compositor Marco Franco. Esta percussão intercalada com silêncio, aparentemente sem qualquer coesão, é um momento primal ou “xamânico”, nas palavras do próprio João Biscainho.

As figuras geométricas a preto e branco refletidas nos com tambores-espelho, adotam uma perspetiva científica dos avanços materiais humanos, enquanto formam uma paisagem sonora paralela: frente a cada momento visual, um tambor, para estarmos cerceados de sinais sonoros de percussão.

Entre a omnipresença da fé e da tecnologia, os nossos medos e vulnerabilidades espreitam.

Inês Almeida (Lisboa, 1993) é licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, é mestre e doutoranda em História Contemporânea pela mesma instituição. Recentemente terminou a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do colectivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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