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One Second Plan: Teresa Murta na Galeria Bruno Múrias

A experiência de contemplação do céu, seja em que parte do mundo for – diretamente ou através de uma imagem -, é sempre entendida para além da sua existência fenomenológica. Não falo aqui de uma dimensão transcendente, divina ou metafísica, tão presente na nossa cultura. Falo de um segundo plano, não teológico, mas próximo de uma força originária das experiências da infância, como diz Goethe[1]. O céu – e as imagens de céu – é metáfora poética pelos seus contornos instáveis, em constante mutação de cores e formas. Esse potencial não se perde nas imagens e, talvez por isso, seja um tema tão recorrente na história da pintura.

Teresa Murta não nos pinta céus, ou nuvens – pelo menos não num sentido literal -, mas a “leitura inefável”[2] é característica que partilha com esses temas. E também ela não se perde nas imagens do seu trabalho.

Devo confessar, com o maior dos embaraços – e faço-o demasiado frequentemente neste lugar – que, apesar de acompanhar assiduamente, com grande admiração, o trabalho de Teresa Murta desde que esta trocou a capital portuguesa pela alemã, nunca tinha estado diante de uma pintura da mesma. Todo o meu contacto foi feito a partir de reproduções fotográficas. Temi este primeiro encontro. Não que não tivesse total confiança no trabalho da artista, mas entendi que a forma – muito atual – como me relacionava com a sua pintura estava inevitavelmente a chegar ao fim. É como quem vê um filme na solidão da sua casa, controla o tempo, pausa, avança, revê, e torna aquela obra uma experiência pessoal. A experiência numa sala de cinema, como numa sala de exposição, é inteiramente diferente.

Acredito que seja genericamente aceite que as reproduções fotográficas de obras de arte – que deveriam procurar uma certa fidelidade para com o objeto que representam – sejam, nos dias de hoje, não só uma ferramenta de promoção, mas também uma forma, e por vezes a única forma, de nos relacionarmos com um determinado trabalho. Num mundo onde o consumo incessante e rápido de imagens é normalizado e promovido, os agentes culturais – e todo o resto – procuram fazer “parar” o “espectador potencial” do seu infindável scroll, e captar-lhe a atenção. Como? Muitas vezes colocando a fidelidade de lado, editando as cores, retirando os defeitos, e apostando numa espetacularização que, no campo da arte, oferece frequentemente o protagonismo aos espaços – que, tendo aqui uma importância fulcral, são comummente manipulados para se tornarem mais aprazíveis – e, por vezes, à criatividade e talento do fotógrafo. Mas isso é toda uma outra questão, e quem quiser vê-la trabalhada criativamente que se encontre com o trabalho do Robert Cummings, que esse vive precisamente através de reproduções fotográficas. O que aqui coloco em causa é que uma pintura de Teresa Murta tem a extraordinária capacidade de não necessitar de qualquer artificio para se manter pintura mesmo que mediada por uma fotografia, e esse primeiro contacto não se substitui, porque difere, mas auxilia; porque torna a pintura um pouco mais nossa.

No tempo que permaneci sala de exposição da Galeria Bruno Múrias, entraram e saíram quatro pessoas. Enquanto me deixava deslumbrar pela primeira vez por essas pinceladas que já me eram tão familiares – mas agora num plano que só uma tela monumental pode oferecer –, ouvi um espectador, atento aos desenvolvimentos da comunidade artística portuguesa, comentar a oportunidade imperdível de ver este novo corpo de trabalho; um cidadão estrangeiro, que, de passagem, ao olhar pela janela, foi levado a entrar na galeria para ver de perto; e um grupo de dois visitantes, mais inexperientes que o primeiro, que comentaram ter visto reproduções das pinturas e foram movidos pela curiosidade. O que têm todos eles em comum? Pelas mais variáveis razões, todas estas pessoas pararam, e decidiram olhar, ver, investir tempo, foram agarradas, deixaram-se apanhar, prestaram atenção. Em dois dos casos, a reprodução trouxe-os até aqui, e é uma prova ainda maior da qualidade do trabalho da artista conseguir – fiel a si mesmo – destacar-se dos milhões de imagens carregadas por dia. E não foram apenas um conjunto de entendidos.

As pinturas de Teresa Murta, como o céu, são um infinito de possibilidades, mexem com qualquer coisa que nos é primária e inata, infantil. São um exercício ambíguo e perverso que se nega sem nunca deixar de se afirmar. Uso uma expressão contrária à de cariz religioso para manter coerência com o que disse no início: quando o vosso olhar for atraído por uma familiaridade irreconhecível – na tentativa desesperada de a decifrar –, deixem-se cair em tentação.

A exposição One Second Plan está patente na Galeria Bruno Múrias, em Lisboa, até dia 16 de março de 2024.

 

[1] Antonio Guerreiro usou a mesma expressão de Goethe no catálogo da exposição écran cego. e projeção de céu de Carlos Nogueira.
[2] Expressão retirada da folha de sala da exposição, escrita por Eva Mendes.

Tiago Leonardo (Lisboa, 2000) licenciou-se em Ciências da Arte e do Património (FBAUL) e frequentou o curso de Jornalismo Cultural (SNBA). Atualmente está a terminar o mestrado de Estética e Estudos Artísticos, com especialização em cinema e fotografia (NOVA/FSSH) onde incide a sua investigação no pós-fotográfico dentro do contexto artístico português. No seu trabalho como escritor e colabora com diversas publicações; como o CineBlog do Instituto de Filosofia da UNL, a FITA Magazine, entre outras.

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