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Sempre e nunca mais, MACE

Cinquenta anos de democracia servem para avaliar a saúde democrática, social, cultural e económica de um povo?

Numa época em que o extremismo de direita, vagamente fascista, saudosista, serôdio e violento, assalta as políticas ocidentais, reclamando um lugar estranho no seio de parlamentos e constituições a que se lhe opõem, nunca a revisão séria e aturada da história contemporânea se afigurou tão importante. É, no entanto, bizarro que muitos meios se furtem a essa reflexão cabal, quer porque tamanha investigação foge aos tempos da aceleradora locomotiva da atualidade – presa a um capital sempre rápido, voraz e sem história –, quer porque os meios disponíveis para o fazer são escassos e o público alvo não está desperto para o passado recente, mercê de um presentismo atarantado e labiríntico.

Escapam os museus e outras instituições de utilidade pública, felizmente, que na sua missão pedagógica, enciclopédica e agregadora contrariam esse tempo, obrigam a um novo entendimento da contemporaneidade e servem de resistência à atomização neoliberal das políticas ocidentais. De facto, o museu consegue esse feito inquietante – e, por isso, fascinante – de estar dentro e fora de um tempo, dentro e fora de um espaço, ao construir um contínuo que se abre a pluriversos e cosmopolíticas diversas, por vezes díspares, é certo, mas sempre profícuas e geradoras.

Portanto, à pergunta anterior poucas são as instituições que poderão responder de facto e com efeito perene, porque só essas que garantem o interesse público plural conseguem furtar-se ao sistema vigente, em tudo contrário à reflexão profunda e concisa, pois que as respostas requerem, muitas vezes, o murmúrio de algo por vir, o sopro de um significado que só depois – depois de muita leitura, depois de muita experiência (coletiva, individual) – se inspira, inala, apreende. A realidade mediática e mediatizada, compulsiva na sua instantaneidade e na gratificação imediata, não é compatível com uma investigação verdadeiramente transformadora.

Quando as palavras se substituem às imagens fugazes, virais, acéfalas, sem texto nem contexto – espúrias criações anónimas que subvertem e galvanizam as mais baixas paixões –, só os artistas (escritores, cineastas, etc.) conseguem uma ressignificação desta cultura visual e plástica (mediatizada, global, desierarquizada), porque só eles dominam as ferramentas criativas e criadoras capazes de fazer vibrar a interrogação, o desassossego e a dúvida numa paradoxal cegueira espiritual coletiva. Só eles conseguem esgaravatar a ferida ainda por sarar e fazer regressar o corpo à sensação e à luz da perceção e da razão.

Propor uma exposição sobre a liberdade e a conquista da democracia será, por natureza, um feito inacabado, incompleto, mas não menos necessário, por tudo o que foi referido e porque estamos perante algo que tem de ser reafirmado constantemente e pelo qual se deve combater eternamente. A exposição (e, por arrasto, a curadoria) é um espaço em perpétua construção. Não se esgota na arquitetura de um museu. A sua qualidade propositiva é análoga à sua qualidade derivativa e mediadora, que agrega reflexões externas, experiências novas, e busca, dentro de cada visitante, outros e sempre renovados inputs que a tornem um pouco mais completa, um pouco mais penetrante.

Sempre e nunca mais não esconde esse facto – antes parece sublinhá-lo –, dentro de uma coleção – a de António Cachola – que se consolida de geração para geração, a cada obra, artista ou aquisição. Estamos diante de uma exposição que mostra artistas cuja atividade singrou depois do 25 de Abril de 1974 ou que nasceram depois dessa data, e que, portanto, é um reflexo direto de uma revolução e de uma conquista democrática.

Sobre a coleção, Delfim Sardo foi preciso: “Em termos gerais poderíamos mesmo verificar que a coleção se foi constituindo como um importante repositório de obras criadas por artistas que correspondem a uma geração nascida após a revolução de 1974, portanto de artistas que viveram uma situação de abertura no seu percurso formativo, inédita para os artistas de gerações anteriores que necessitaram de encontrar formas de se ligarem aos percursos da arte internacional do seu tempo.”[1] Ou seja, esta é uma coleção inextricável de um contexto democrático novo, que se emancipa dos velhos costumes e das velhas narrativas, abrindo-se ao futuro, às novas gerações e ao presente global.

Nada em Sempre e nunca mais é neutro. Como neutro nunca poderá ser um museu. Tudo navega a fragilidade da condição contemporânea e da memória. Manuel Botelho transporta-nos para uma ferida recente – as guerras coloniais; Mané Pacheco recorda as armas das lutas femininas; Lea Managil propõe uma moratória onírica para a construção utópica que a folha de sala sublinha – uma peça que garante uma inventiva reinterpretação a cada exposição; Inferno IX, de Rui Chafes, desafia e inquieta na sua tortuosidade; Daniela Ângelo retrata os ícones do marketing moderno globalizado; Maria Lusitano relembra a nostalgia do Portugal Suave das ex-colónias; Maria Appleton desconstrói a lavoura feminina do bordado e da tecelagem, numa divertida composição de materialidades e técnicas; Fábio Colaço traz para o debate o alcance periclitante do grande capital, a grande mão invisível que ameaça derrubar o mundo; Noé Sendas ensaia uma cena lacaniana de espelhos, espaços fragmentados e solidão; Alice Geirinhas traz-nos o melodrama cinzentão da morte de Salazar, que tem tanto de dramático quanto de patético; Mariana Gomes mostra-nos a liberdade plástica da pintura e o descomprometimento total do exercício criativo e pictórico; Vadios, de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, constitui um marco da libertação sexual, que ultrapassa o olhar censório, conservador e violento para celebrar, enfim, o amor e o sexo gay; Carla Filipe traduz visualmente a musicalidade da revolução tocada por Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti; Xavier Almeida traz os objetos urbanos das manifestações para o interior do museu; e Ângela Ferreira pontua o gesto que imortalizou a Revolução dos Cravos em Hotel da Praia Grande (O Estado das Coisas) e serviu de ícone romântico para a literatura e memória históricas, um símbolo que convoca algo de inspirador,  mas também de decetivo.

Este é um exercício curatorial que também ele reclama a liberdade propositiva e recombinatória que a curadoria tem vindo a advogar, estabelecendo diálogos menos óbvios, alargando os contextos conceptuais de certas obras, encontrando outros contextos para obras já mostradas, sob novas luzes, ensaios ou proximidades. Do início ao fim, toda a curadoria promove um nexo dialógico inesgotável de “boas vizinhanças” – um imenso atlas warburguiano da liberdade e da revolução.

Com a curadoria de Ana Cristina Cachola e a assistência curatorial de Tiago Candeias, Sempre e nunca mais está patente no MACE e no Paiol de Nossa Senhora da Conceição, em Elvas, até 2 de junho, com obras de mais de 30 artistas pertencentes à Coleção António Cachola.

 

[1] Sardo, Delfim, “Um fino termómetro social. A Coleção António Cachola em contexto”. Disponível em https://col-antoniocachola.com/?page_id=2339&lang=pt

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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