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Queerness em Two Faces Have I

Nos últimos anos, o mundo underground LGBT dos anos 1970 e 1980 tem vindo a ser objeto da cultura popular. Séries, filmes, livros e álbuns têm realçado a ideia de uma comunidade ostracizada, que habitava uma certa mundividência, com códigos próprios e lutas políticas que enquadravam essa sociabilização. Assim se contextualiza a apresentação de Bondage Boy, de Chris Langdon, o vídeo que é uma das obras centrais da exposição Two Faces Have I, com curadoria da Ampersand – a mostra é o quinto capítulo do ciclo Território, desenvolvido em parceria entre a Fidelidade Arte, a Culturgest e o curador Bruno Marchand. Dentro da estética dos retratos de Nan Goldin do espaço queer, nele aparecem a feminilidade e a hipersexualização sem pudor, que nesta altura só poderiam pertencer a um submundo oculto à maioria, ao som de These Boots Are Made For Walking. Descrito pela própria como uma sátira, não deixa de revelar as imagens do seu microcosmos. Esta obra é parte de uma série de filmes reproduzidos nas várias salas em sincronia e é provavelmente o mais interessante dos seus vídeos experimentais.

Mas há outros. Num deles, o diálogo sobre as características do laser e como o tornar artístico lembra a imagem da luz vermelha de 2001: Odisseia no Espaço, que depois encarna a tirania das máquinas. Temos também o momento de um vinil que toca ou experiências de filmagem de uma roda de um carro; imagens que, ao som do rock do seu tempo, realçam a importância do barulho e do silêncio, abrangendo as muitas potencialidades do formato vídeo. Há mesmo um filme que passa do retrato de um trabalhador anónimo à sua nomeação a partir do que aparenta ser o seu cérebro, apresentado tal qual seria numa dissecação de cadáveres de medicina rudimentar. Os inúmeros auxiliares, entre a folha de sala portuguesa, a folha de sala alemã da exposição original e os comentários feitos pelas artistas e por outros, reorientam, tanto quanto confundem, o espectador.

Entre tanta exploração de conceitos, é a representação de uma expressão de género diferente, e do sexo como algo que envolve dominação e submissão que apresenta o traço arqueológico do percurso de Chris Langdon. Este é o nome artístico que Inga manteve associado a estas obras, mesmo depois da sua transição de género, um momento no tempo antes de mudar de país e deixar esse percurso social e artístico para trás.

No entanto, não é de um monólogo que se trata nesta exposição. O mote dos filmes omnipresentes não representa senão um diálogo com as três outras artistas. Jana Euler apresenta-nos imagens de lesmas, representadas com um pendor agressivo, cuja relação com as outras obras potenciam uma ideia de repulsa; podendo aplicar-se ao mundo queer, à marginalização dos anos 1970, que se agravará com o abandono de certos cidadãos à pandemia de SIDA, a partir dos anos 1980.

As obras a duas cores de Sylvie Fanchon lembram a exposição do coletivo General Idea, apresentada em Berlim até ao início deste ano. Dedicando-se Fanchon a representações de um único objeto, as cores em nada se relacionam com os tons pastel das donas de casa dos anos 1950 e em tudo com o mundo das heráldicas e kamasutras de poodles do coletivo referido.

Em contraste com essa estética queer, a imagem central de Euler é a de um grão de café, a que Louisa Wombacher atribui na folha de sala o papel de representante da máquina incessante do capitalismo, quer pelo aspeto simbólico do quotidiano de trabalho de um homem robotizado, quer pelas infraestruturas coloniais que este produto específico pressupõe. Não se trata de uma referência inócua ou descontextualizada, dado que este quadro dialoga com as representações de Pati Hill.

Esta artista procura, nas obras presentes, objetos que fazem parte do espaço do trabalho doméstico, como alimentos, telefones e aspiradores. Para isso, usa a fotocopiadora, um instrumento essencial próprio de uma época. Esta apresentação contrapõe-se à feminilidade de Langdon com um feminino clássico, o da dona de casa, que assegura a alimentação e a limpeza, que comunica com outros a partir desse espaço de reclusão. Para realçar esta ideia, a plataforma Ampersand, em colaboração com Ana Baliza, constrói, em 2024, um papel de parede feito só de anúncios de aspiradores, a partir do arquivo Women and Vacuum Cleaners, de Hill. Da sociedade marginal navegamos para a sociedade consumista da classe média americana, onde sistematicamente se tenta demonstrar que os eletrodomésticos vieram simplificar a vida das mulheres, mas que as mantêm, pelos mesmos meios que se diz que as libertam, remetidas para esse espaço doméstico. Ambas existem na mesma cronologia, mas o que as separa parece ser uma fratura social inultrapassável.

Para finalizar esta ideia de transformação, desconstrução e reconstrução, aparece-nos um quadro de colagens das feições de duas pessoas, que se tornam dezasseis caras. Porventura, num aceno ao começo da normalização da cirurgia plástica, quer para pessoas transgénero, quer para mulheres cisgénero (pessoas que se identificam com o género que lhes foi atribuído à nascença) de classe média – as tais figuras domésticas, que procuram cumprir os padrões de beleza ou normalidade das revistas. Não quer isto dizer que a desconstrução das colagens não traga desconforto, mas sempre numa referência à mutação do papel social, como da descoberta do indivíduo, caso plasmado em Orlando, filme recente e autobiográfico de Paul B. Preciado, baseado na obra do mesmo nome de Virginia Woolf, que se apresenta a partir de múltiplos atores desempenhando o mesmo papel. É por isso, afinal, que uma tradução literal do nome da exposição é “duas caras tenho eu”. Qualquer outro título seria redutor para tudo o que se pretende abranger.

A exposição é, portanto, num primeiro momento, um olhar sobre o indivíduo na relação com a sociedade, num contexto em que o género foi naturalizado pelas categorias binárias de sexo. Mas é mais do que isso. É a expressão da feminilidade numa sociedade em que esta é relegada para o invisível: para o interior da casa, como para os bairros onde distinções de orientação sexual e de género se fundem, aos olhos da sociedade, com pobreza e degeneração. A feminilidade não é necessariamente minoritária, mas é sem dúvida relegada para a ausência de poder e para a manipulação dos agentes da normatividade.

Inês Almeida (Lisboa, 1993) é licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, é mestre e doutoranda em História Contemporânea pela mesma instituição. Recentemente terminou a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do colectivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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