Criador e criatura, André Cepeda e Double Jeu
Foi uma visita despretensiosa, num típico sábado ensolarado do inverno lisboeta. Dirigi-me à Galeria Cristina Guerra na expetativa de encontrar a atmosfera mais ou menos familiar a que nos convidam as fotografias de André Cepeda – sempre bastante reconhecíveis nos seus contrastes rigorosos, enquadramentos precisos e vazios sedutores. O título da exposição, Double Jeu, também parecia anunciar, a priori, uma certa dialética que nos acostumamos a pontuar diante de trabalhos fotográficos: presença e ausência, luz e sombra, figuração e abstração, conteúdo e forma, real e representação. Deveria ter premeditado, contudo, que a mostra de André Cepeda far-se-ia num jogo muito mais denso e sofisticado, cujas premissas e ecos tento ainda resolver, enquanto escrevo (peço desculpas e licença, desde já, para as pessoas que não suportam mais os textos críticos em primeira pessoa).
Isto porque, em primeiro lugar, há uma opacidade especial nas imagens de Cepeda – uma qualidade que julgo estar associada, ao mesmo tempo, à sua posição sensível diante do tema fotografado e às suas escolhas técnicas e estéticas para a produção de imagens. Não é novidade que o artista tem predileção pelas câmaras de grande formato e o uso de tripé, numa construção e captação meticulosas dos planos que fixa sobre a película, frequentemente uma primeira e única vez. Assim, em torno de um instante fugaz e irrepetido, o que se coloca é uma prática lenta, silenciosa e cuidadosa; Cepeda olha como quem toca e é tocado de volta. “A floresta, os pântanos, as planícies fecundas, tocaram mais os meus olhos do que os olhares. Apoiei-me na beleza do mundo e segurei o odor das estações nas minhas mãos”, segundo dizem-nos as palavras de amor de La Comtesse de Noailles[1].
Esta obscuridade nas fotografias do autor, portanto, reflete um modo singular de contacto com o mundo, que mais parece abrir-se para o invisível do que encerrar o visível. Diante das suas fotografias, mesmo cientes da precisão com a qual são esculpidas, não temos a garantia de uma frontalidade completa: isto significa dizer que as obras de Cepeda são, talvez, um caso exemplar de uma imagem paradoxalmente “desprovida das virtudes objectivantes sinópticas e totalizantes da visão”, proveniente de uma “relação ou intencionalidade de um tipo inteiramente diverso”[2]. Facto é que, assim sendo, a fotografia abandona a sua morada permanente no tempo passado para passar a habitar o tempo da surpresa. Restituída de certa autonomia, guarda e vibra segredos por descobrir.
Ocorre-me, então, a história de Goliádkin, protagonista d’O Duplo de Fiódor Dostoiévski: em determinado momento da sua vida, a personagem depara-se com o seu clone idêntico e homónimo, e vai sucumbindo à loucura enquanto o observa a usurpar a sua identidade. O duplo apropria-se da vida do “original” – ou, simplesmente, daquele que conhecemos há mais tempo na narrativa –, mas não para a reproduzir, senão para a transformar. É certo que a duplicidade é parte diegética das fotografias de Cepeda em Double Jeu, assumindo-se como mote das imagens sobretudo na primeira sala, onde se veem duas grandes rochas lado a lado, duas almofadas sobre uma cama ou duas cadeiras desocupadas, estranhamente próximas numa mesa reclusa de um café. A maquete da exposição em suspenso – construída pelo gabinete Carrilho da Graça –, porém, sugere um mecanismo similar ao do narrador no romance dostoiévskiano, e revela-nos um jogo duplo a muitos níveis, também entre a criatura – ela mesma replicada, porém dotada de independência na sua impenetrabilidade – e o criador – que ora se distancia, ora se aproxima da voz do seu herói (ou, neste caso, da sua exposição), contextualizando-o ou parodiando-o, num tom que não deixa de ser cómico e trágico.
Double Jeu, de André Cepeda, com curadoria de Joerg Bader e texto de sala Inadequações de Christiane Vollaire, para ver na Galeria Cristina Guerra, até 9 de março de 2024.
[1] Como citada por Levinas, Emmanuel. (1974/2011), De outro modo que ser ou para lá da essência. (José Luis Pérez; Lavínia Leal Pereira, Trans.). Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, p. 93.
[2] Levinas, Emmanuel. (1961/1980). Totalidade e Infinito. (José Pinto Ribeiro, Trans.). Edições 70, p. 11.