(This) Non Linear Beat de Inês Norton no Forum Arte Braga
Assumindo como ponto base da sua pesquisa artística e multidisciplinar o binómio natural-orgânico versus artificial-sintético, Inês Norton (1982) explora, mediante a observação e registo destes dois conceitos aparentemente antagónicos, os diálogos contemporâneos que surgem do seu encontro, pontos de interceção, de dissonância e tensão, assumindo-os enquanto campos de reflexão e investigação que se ramificam e revelam na sua linguagem artística. Recorrendo ao vídeo, à instalação, escultura, fotografia e medias diversos, a prática artística de Inês Norton estabelece pontes entre a inteligência artificial e emocional, conduzindo-nos pela perceção do nosso corpo e do mundo, num diálogo constante entre o homem, os animais, plantas e outros seres.
Analisando a relação entre o homem e a natureza e inspirada pelo contacto recente com plantas medicinais, que possibilitaram à artista o encontro com outras dimensões da sua essência e estados ampliados de consciência, a exposição (This) Non Linear Beat, no Forum Arte Braga desafia perceções culturais e de realidade, conduzindo-nos através da consciência alterada e do tempo não linear. Investigação poética sobre cosmologias alternativas baseadas no animismo e no biocentrismo, (This) Non Linear Beat anuncia a dissolução do pensamento do eu individual e a capacidade de entender a vida de modo integrado, numa visão que se alia à cosmologia indígena, segundo a qual o conhecimento resulta de um contato com o mundo natural e plantas etnogenias, que possuem o espírito dentro de si, numa perspetiva que sacraliza a natureza.
Assumindo-se enquanto tributo ao natural, ao artificial, ao espiritual e ao cosmos[1], a mostra revela também a aproximação da artista à cerâmica, medium conotado como hobby feminino, considerado um género menor no mundo das belas-artes, mediante um corpo de trabalho que promove o questionamento entre hierarquias artísticas. Conceitos de magia, cura e ritual acompanham-nos ao longo da exposição de Inês Norton, que, inspirada pelos efeitos psicadélicos de plantas alucinógenas em práticas medicinais ancestrais, rituais espiritualistas de cura e neoxamanismo – numa experiência de retorno à cultura arcaica e saberes ancestrais –, durante uma residência artística no Brasil, lançou-se na prática de produção cerâmica no atelier de João Lourenço em Barcelos, que se materializa na série de peças inéditas em exibição. A diluição das tradições vernaculares e contemporâneas na cerâmica reflete-se em obras cuja organicidade das formas, liberdade, cromatismo e possíveis desdobramentos evocam a ligação à natureza, a conexão à terra e um regresso à manualidade e ao tacto. Evocando técnicas ancestrais, as esculturas – em cerâmica[2] e alumínio – testemunham o equilíbrio entre memória, tradição e imaginação, cruzamento entre elementos orgânicos e industriais, sendo de destacar o modo como a artista se relaciona com a plasticidade e a maleabilidade de um material frágil, criando obras com escala e relação física. Numa combinação entre motivos figurativos e abstratos dominados pela cor púrpura – que introduz uma abordagem objetual, lúdica e dinâmica ao conjunto –, reconhecemos elementos florais, criaturas híbridas e fantásticas, monstros e exoesqueletos, numa constante dicotomia entre exterior e interior. Distribuídas em equilíbrio perfeito com o espaço da galeria, num exercício de aparente simplicidade, as obras dispersas pelo chão, parede e também suspensas, mergulham-nos num exercício poético da artista, numa paisagem psicadélica imersiva, numa realidade alterada onde o tempo se dilui, e na qual imperam possibilidades infinitas e convergências entre espécies. Observamos corpos não humanos, entre seres primitivos e alienígenas, que, como fósseis, evocam tentáculos ou caules de plantas, carapaças e vertebras, numa complexidade, estranheza e organicidade de formas cujas superfícies pigmentadas testemunham a experimentação da artista com diferentes texturas.
Destacamos a representação escultórica de Welwitschia Mirablis, planta única pelo seu aspeto físico de caule lenhoso, enorme raiz e folhas em forma de fitas largas; pela sua fisiologia e por existir somente o norte do deserto do Namibe e sul de Angola. Assemelhando-se a um polvo num deserto, a planta rasteira que existe desde o período jurássico e pode atingir uma longevidade de cerca 2000 anos, simboliza nesta obra a exploração do tempo pela artista, ao mesmo tempo que evoca o belo, o sensual e o feminino através da sugestão de uma vulva. A alusão ao tato e o convite ao toque – explorado anteriormente pela artista – são-nos revelados na composição entre uma peça cerâmica e pelo de animal, obra cujo contraste entre as texturas que a compõem nos desafia a uma interação tátil. Seduzidos pela presença do som, uma batida não linear que nos acompanha ao longo da mostra, observamos entre a leveza e tensão o enorme círculo suspenso no centro da sala, signo associado à eternidade, ao divino e ao tempo, que evocando simbolicamente a perfeição e pureza das formas, alude a um universo entre a cosmologia e cosmogonia, remetendo-nos para o ciclo interminável de criação.
No mesmo espaço onde se exibem os trabalhos escultóricos, destaque para a obra videográfica Digital Chlorophyl, que, projetada em dois ecrãs LCD verticais, revela – num jogo de duplos – imagens de aloé vera, planta de propriedades terapêuticas utilizada em práticas medicinais milenares por diversas culturas, considerada pelos egípcios como planta da imortalidade e pelos gregos panaceia universal. Observamos a obra poética da artista, deixamo-nos guiar pela cadência e beleza das imagens; pela simplicidade das gotas de água que permanecem e escorregam pela superfície verde das folhas grossas e carnudas da planta; pelos espinhos das suas bordas serrilhadas; e pela gota generosa da sua seiva[3] que, como gel, verte com sensualidade numa ode à vitalidade da natureza.
A encerrar a exposição, numa pequena sala contigua à anterior, visionamos projetada na parede e imersos na escuridão, Glittered Healing – Tropical formula, trabalho videográfico criado em colaboração com Paulo Arraiano (1977), com banda sonora de Arara e Sofia Nunes. Ao longo da obra, somos guiados numa viajem psicadélica não linear por paisagens temporais de fungos[4]. Numa profunda contemplação sobre a essência da existência humana, navegamos por um estado alterado de perceção, um sonho que entre realidade e ficção, nos é narrado por uma voz feminina. Entre imagens cintilantes e coloridas de efeito caleidoscópico, ouvimos a experiência de exotismo antropomórfico e de realidade aumentada e de sinestesia pura.
Prevendo a exposição, nas palavras da curadora Despoina Tzanou, um mundo em que a pele se torna pelo, o metal se torna clorofila e os poros se tornam hardware, Inês Norton liberta-se e liberta-nos de normas, defendo um pensamento integrado com o mundo natural e ancestral no qual fauna e flora conectam-se num mesmo corpo energético, como um organismo imortal. Echo performing an ancestral choreography of eternal happy endings. Driven by magic, I sneak through polymorphic ecosystems[5].
(This) Non Linear Beat de Inês Norton estará patente no Forum Arte Braga até ao dia 3 de março de 2024.
[1] TZANOU, Despoina. (This) Non Linear Beat. Folha de sala da exposição.
[2] Num curioso contraste, as obras em cerâmica são revestidas com tinta industrial iridescente para automóveis.
[3] A transmigração dos seres vivos do meio aquático para o meio terrestre implicou a difusão da agua por todo o corpo dos seres pluricelulares, o que foi conseguido através de um líquido (sangue nos animais; seiva nas plantas), transportado por vasos (veias e artérias nos animais; floema e xilema nas plantas).
[4] TZANOU, Despoina. (This) Non Linear Beat. Folha de sala da exposição.
[5] Transcrição de parte do texto presente na obra videográfica Glittered Healing – Tropical formula.