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Entrevista a Nicolás Paris, autor da capa do mês

Nicolás Paris (Bogotá, 1977) interrompeu a sua formação como arquiteto para ser professor numa escola rural na Colômbia. Aí aprofundou o seu interesse e investigação acerca de questões que se prendem com processos de aprendizagem coletivos. Transporta essa experiência e desenvolve esse saber através do seu trabalho artístico, munindo-se das ferramentas que a arquitetura lhe proporcionou, apelidando-se de “pseudo-arquiteto”. Entre janeiro e fevereiro de 2024, desenvolveu uma série de oficinas na Escola da Vila no Porto Santo no âmbito da residência que aí realizou através da Porta 33, um projeto a que chamou Árvore Relâmpago. A conversa que tivemos aborda reflexões acerca do seu trabalho e da experiência que teve neste seu regresso à escola.

A educação e a pedagogia através da arte, ou antes a arte através da pedagogia, como me corrigiste há uns dias, são estruturantes no teu trabalho. Tiveste um início de formação em arquitetura e foste professor. É certeiro ter-te em residência no espaço de uma escola, principalmente numa escola como a “Escola da Vila”, edifício notável da autoria do arquitecto Raúl Chorão Ramalho. Como foi habitar e trabalhar neste espaço e descobrir o território do Porto Santo, na sua condição insular, a partir daqui?

Iniciei a minha formação como arquiteto, no entanto penso que sou um pseudo-arquiteto. A meio do meu processo de formação candidatei-me a um programa para trabalhar como professor voluntário numa escola rural. A organização aceitou a minha proposta e comecei a trabalhar com eles quando tinha cerca de 22 anos. Foi uma experiência poderosa, mas também intensa. Tomei uma decisão um bocadinho radical, a de desenvolver o meu próprio processo de aprendizagem, um processo de auto-verificação. Sempre a partir de um ponto de vista arquitetónico. Trabalhei a partir de elementos da arquitetura, não para desenhar, mas sim para desenvolver ambientes ou lugares. Comecei a delinear todas as minhas propostas de aprendizagem utilizando o desenho como ferramenta. Adoro a ideia de que a arquitetura, na sua relação com o desenho, mais do que ser uma técnica de representação, seja uma ferramenta para projetar ideias, para a criação de diálogos entre diferentes disciplinas, conhecimentos ou entre diferentes pontos de vista e processos de trabalho. Assim, o desenho, mais do que uma linguagem comum, tornou-se um sistema de pensamento, uma ferramenta para projetar ideias.

Esta história é talvez o ponto de partida para o meu trabalho. Levou-me a pensar que o processo de aprendizagem de uma pessoa é como um fractal do processo de aprendizagem de toda a humanidade. O que encontrei ao trabalhar com um grupo de pessoas que estavam a aprender, ao mesmo tempo que eu estava a aprender a ser professor a partir de uma intenção de construir ambientes de aprendizagem, eu ainda investigo como artista. Estar na Escola da Vila permitiu-me regressar a essa intenção inicial, a esses processos de construção lentos, baseados na confiança. Entender a sua história e a atitude do arquiteto ao desenvolver o desenho do seu edifício a partir do vazio foi muito estimulante para mim.

Isso significa que o edifício e o próprio arquiteto poderão também eles ser professores ou alunos?

Sim, isso é muito bonito. Todo o projeto da Escola da Vila é como um sistema ou um organismo. A Escola está a transformar-se numa espécie de Centro Cultural, o seu edifício está a aprender agora a ser um tipo diferente de Escola. Gosto da ideia de que todos estamos a aprender algo. Talvez este seja um lugar para, a partir de micro encontros, de processos erráticos, lentos, encontrar novas formas de estar juntos, sem repetir a história, sem repetir os processos formais, académicos ou lineares, apoiando um pensamento espacial que cresce em muitas direções, onde todos somos parte do mesmo sistema de crescimento. Um processo baseado no cuidado, no cuidar do edifício e do legado do arquiteto. 

O que dizes transporta-me para uma frase tua: “Projetar a arquitetura pode ser um exercício de resistência tal como aprender na escola é um ato de resistência”. Podes desenvolver um pouco mais esta reflexão?

Claro. O processo de aprendizagem na escola não é o único que pode ser um exercício de resistência. Aprender em geral é um exercício de resistência pois penso que nós temos a responsabilidade de mudar, de apoiar a impermanência do mundo, do universo. A aprendizagem é um momento da tua vida onde desenvolves uma atividade pontual, mas eu gosto de pensar que ela é uma atitude. Neste momento da tua vida é uma atitude que tens que desenvolver porque ela permite uma possibilidade de mudança. Acima de tudo, penso que aprender é uma poderosa e bonita forma de criar novas ligações. Gosto muito desta ideia, que talvez venha da biologia ou da neurobiologia, onde a razão principal de qualquer anatomia ou de qualquer fenómeno da natureza é criar ligações, para criar sistemas ou ecossistemas. O que quero dizer é que devemos possibilitar que a aprendizagem permita que nós possamos crescer em relação com outros. Que a melhor forma de resistir às convenções é procurar, com muita responsabilidade, transformar as experiências individuais em aprendizagens coletivas. Escola vem da palavra grega “skholê”, que significa que a escola é o tempo onde encontras o que é importante para ti. Eu diria que é o tempo onde encontramos o que é importante para nós.

Regressando ao início, lançaste as oficinas que tiveram lugar na Escola da Vila como um convite para “a formação de um grupo de estudo sem objetivo ou destino definido”. Como foi trabalhar com o grupo que encontraste no Porto Santo?

Eu entendo uma oficina como um suporte ou um meio artístico. Ela estabelece uma relação muito forte com a ideia da palavra como material plástico. Desenvolver uma oficina ou estar com um grupo de pessoas de diferentes idades, com diferentes níveis académicos, ou percepções, e desenvolver exercícios, quase todos eles de desenho experimental, que as convida a pensar em termos espaciais, sendo uma desculpa para produzir reflexões, é um suporte ou um meio para mim. Uma oficina é o meu estúdio, é onde eu aprendo a ser artista a partir dos outros. É o momento onde eu posso ser, como disse, um pseudo-arquiteto. Neste caso decidi que a oficina podia ser o ponto de partida para habitar a escola. Oficinas que não são apenas para outros, são também para mim. Nestes processos erráticos, mais importante do que avançar, é criar desvios. As oficinas foram assim laboratórios, onde o mais importante foi estarmos juntos na Escola da Vila, um lugar que nos permitiu encontrar novas formas de estar juntos. Como não sabíamos qual seria o nosso o objetivo, qualquer coisa que acontecesse seria sempre extraordinária, porque aprendemos. Trabalhámos com grupos de diferentes idades experimentando juntá-los no mesmo momento de aprendizagem. Foi interessante perceber como em diferentes gerações há diferentes formas de estar e de entender a ilha. Penso que pelo facto de ter estado com diferentes grupos fiquei a perceber melhor o Porto Santo. Para mim, o mais importante é que tudo surja a partir de um processo de aprendizagem coletivo. Aspiro que o projeto que acabarei por desenvolver, quer seja uma intervenção arquitetónica, uma peça, uma instalação ou outro, seja uma plataforma. Quero transformar a minha experiência nesta ilha numa aprendizagem coletiva.

Li que te interessas por “questões como: quem ensina e quem aprende – como aprender com os erros – como o erro opera e transforma o ato da escuta”. Samuel Beckett refere “falhar, falhar outra vez e falhar melhor”. É este processo de tentativa e erro, este falhar melhor de que fala Beckett, que guia os processos de aprendizagem que incorporam o teu trabalho?

Sim, definitivamente. Gosto de pensar que o meu trabalho é cometer bons erros.

Ao repetir uma ação, uma intenção, uma situação ou um erro muitas vezes, estabelecemos um caminho para que por meio da repetição, essa ação, intenção, situação, esse erro, se transforme em algo poético. Há uma transformação plástica, dos materiais e sobretudo das ideias em algo comum.

Há um livro de que gosto muito de Jacques Rancière, “Mestre Ignorante”. Com ele aprendi que o elemento fundamental para que aconteça um processo de aprendizagem é que exista confiança, é confiar no outro. Se houver confiança, se estivermos num ambiente onde nos sintamos seguros, quando cometermos um erro existirá aprendizagem, porque cada um conseguirá ser responsável pelo seu próprio processo. Se isto acontecer, eu começarei a perder o controlo. Perante esta inevitabilidade, confio que cada uma das partes procurará, generosamente, transformar essa experiência em conhecimento. Cada momento do meu método de trabalho é uma tentativa para cometer melhores erros.

Porquê Árvore Relâmpago?

Bruno Munari disse que uma árvore é a lenta explosão de uma semente. Eu gosto de pensar que uma árvore é um relâmpago lento. Um relâmpago liga o céu à terra e uma árvore liga a terra ao céu. Se invertermos o relâmpago, ele poderá ser uma árvore de luz ou, uma árvore instantânea. Esta é uma imagem que espelha a ideia de que todos pertencemos à mesma ordem de crescimento. Árvore Relâmpago apresenta uma possibilidade para desenvolver ligações. Ligar diferentes escalas mas também ligar o permanente e o efémero, o individual e o coletivo, o quotidiano e o extraordinário, ligar-nos.

Há uns dias referias-te às oficinas como um projeto expositivo. Delas resultará de facto uma exposição, que terá lugar na ilha do Porto Santo e na Porta 33 no Funchal. Ela será assim uma continuação das oficinas?

Desejo levar toda esta experiência a outros lugares para que não fique fechada, para que seja uma desculpa para estar em diálogo com outras entidades, com outras instituições. Como referi antes, gosto de pensar que uma exposição ou uma peça, é parte de um processo de investigação ou do desenvolvimento de um método de trabalho. Não faço peças ou instalações, desenvolvo projetos expositivos. Então, esta exposição que vai acontecer no futuro, já começou, já está a acontecer. Estamos constantemente a fazer, a destruir, a desfazer, a aprender e a desaprender.

O que pensas que irás levar contigo e para o teu trabalho deste período em que estiveste no Porto Santo?

Mais confiança em desenvolver o meu trabalho a partir do quotidiano, a partir de um ritmo lento, a partir da palavra. Levo uma confiança profunda em que os processos de transformação e de aprendizagem sustentáveis habitam, acontecem ou iniciam-se em situações deste tipo, não apenas erráticas, mas também tranquilas, situações habituais como as que acontecem numa escola.

Para concluir, o que pensas que deixaste no Porto Santo, ao Porto Santo e aos Porto Santenses?

Não gostaria de dar uma resposta geral. Penso que com as crianças, juntos deixamos momentos divertidos e o pensamento de como a aprendizagem deve ser divertida. Com os jovens, acho que deixamos muitas perguntas em aberto e sobretudo perguntas incongruentes, às quais talvez nunca iremos encontrar respostas ou apenas as encontraremos com tempo. Já com os adultos, incluindo a equipa da Porta 33, penso que deixamos uma sensação de calma e de tranquilidade. Referiram isto algumas vezes no final das oficinas, como se o tempo tivesse sido suspenso.

Penso que de alguma forma mais do que partilhar exercícios, partilhei um sistema de pensamento que permite fazer ligações e que nos entendamos como algo mais amplo do que nós próprios. Gostaria de acreditar que todo este sistema deixará um bom erro ou um rasto na ilha, algo que se vai tornar obsoleto e se se converter em algo obsoleto, no meu ponto de vista, isso é algo maravilhoso, porque significa que vai deixar de ser e vai dar lugar a algo novo, algo inesperado, algo que não controlamos.

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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