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Dayanita Singh: Dançando com a minha Câmara em Serralves

Do Museu Gropius Bau (Berlim) ao Museu Villa Stuck (Munique) e ao MUDAM (Luxemburgo), a primeira grande retrospetiva de Dayanita Singh (n.1961, Nova Deli), Dançando com a minha Câmara, comissariada por Stephanie Rosenthal (Diretora, Gropius Bau), termina a sua itinerância no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Reunindo obras da artista indiana realizadas ao longo de quatro décadas, percorre a sua prática artística, desde a primeira metade da década de 1980, quando realizou o seu primeiro projeto fotográfico sobre o percussionista Zakir Hussain (n. 1951, Bombaim), até à sua obra mais recente Let’s See (2021). Curiosamente, esta última também é a sua mais antiga, pelo recurso a imagens dos anos em que iniciou a sua produção, numa espécie de ouroboros dançante, no cruzamento de vários tempos, geografias, pessoas e temáticas, como a música, a dança, a arquitetura, ou o género. A prática artística de Singh distingue-se pelo modo como aborda a fotografia através de um processo de edição intuitivo – como uma performance improvisada, em que parte das muitas provas de contacto do seu arquivo, combinando-as e reinterpretando-as –, mas também pela forma como as suas imagens são apresentadas, criando diversas estruturas – como os seus livros-objetos, livros-museu, carrinho de livros ou porta-livros –que subvertem as fronteiras entre espaço expositivo e editora, e questionam as noções de museu, colecionismo e arquivo.

Dayanita Singh: Dançando com a minha Câmara converge todas essas ideias subjacentes à prática artística de Singh como uma espécie de ‘ouroboros dançante’ que se vai expandindo, onde vamos serpenteando com o nosso corpo as imagens e dispositivos de exibição que a artista vem construindo ao longo dos anos, através de uma montagem imagética, repleta de narratividade, interpelando a um senso de ritmo, som e percussão.

A ideia para a criação das suas próprias estruturas de exibição surgiu pelo trabalho em arquivos documentais na Índia, onde os arquivistas produzem os seus dispositivos de conservação e métodos de catalogação. Iniciando com File Museum (Museu dos Ficheiros) (2012) e, um ano depois, com Museum Bhavan (2013) – o título que junta os seus museus –, estas grandes estruturas de madeira feitas à mão podem ser dispostas e abertas de várias maneiras, contendo imagens emolduradas expostas e, mais no interior, na coleção de reserva, assemelhando-se a biombos, ou leques expandidos no espaço expositivo. Na primeira galeria do Museu de Serralves estão expostas File Museum (Museu dos Ficheiros) (2012), onde a artista reúne um conjunto de fotografias a várias tipologias de arquivos na Índia, Museum of Chance (Museu do Acaso) (2013), com imagens de filmes, palavra escrita, ou cenas do quotidiano, e Little Ladies Museum 1961-present (Museu das Pequenas Senhoras 1961-presente), onde compila fotografias tiradas pela sua mãe a si e às suas irmãs, imagens suas de mulheres que lhe são próximas, e retratos femininos que foi captando. A abordagem de Singh à exibição das suas fotografias através destes museus, para além de lhe permitir editar o seu trabalho de várias formas, potenciando novas narrativas, sequências e justaposição de imagens, também dá lugar ao espectador ir descobrindo o seu mundo, perscrutando não só com a visão, mas também com o corpo, percorrendo todos os detalhes de cada fotografia e estrutura performaticamente.

O modo como Singh edita o seu trabalho através de provas de contacto é, também, uma inspiração para a criação dos seus museus, pois são desenhados à semelhança do rol de imagens disposto no papel fotográfico. Olhar para o arquivo vai lhe proporcionando o surgimento de novas séries, montadas concetual e formalmente, seguindo várias direções, influenciada pelas obras literárias de Jorge Luís Borges (1899-1986), Italo Calvino (1923-1985), ou Orhan Pamuk (n.1952). Foi com a publicação Go Away Closer (Ir Embora Mais Perto) (2007) que começou a sua metodologia de edição por intuição, ao som da Primeira Sinfonia de Mahler, criando uma obra que pode ser lida, como um romance sem palavras. Segundo a artista: “O formato do livro é muito íntimo. A meu ver, é a melhor forma de olhar para a fotografia. Preferia abdicar da qualidade da impressão, mas não suporto o vidro que se interpõe entre mim e a fotografia. Por isso, adoro o livro, adoro o facto de podermos manuseá-lo e de ter descoberto uma solução para que o livro também possa estar na parede. Quando posso ter um livro a fazer tantas coisas diferentes, não preciso de imprimir imagens individuais”[1].

Neste sentido, os livros de Singh são o cerne da sua prática artística, reinventando as suas formas e expandindo-os para o espaço expositivo em formato livro-museu. Os livros-objeto são estruturas de madeira, que podem ser penduradas na parede, na qual os livros se encaixam, podendo ser retirados, manuseados e lidos. A artista também criou o porta-livros, acrescentando dobradiças nos livros-objeto e pondo-os num estojo de couro. Em Serralves podemos ver Kochi Box (Caixa Kochi) (2016), Kishori Tai (2021), ou Sent a Letter Museum (Museu Carta Enviada) (2008/2021). Com destaque para Suitcase Museum (Museu das Malas de Viagem) (2015), distinguindo-se por ter quarenta e quatro capas diferentes, juntas em duas malas de couro, lado a lado com a exibição dos livros na parede da galeria.

Juntamente com estas noções na prática artística de Singh, a exposição vai se intensificando na segunda galeria, destacando o pensamento e produção da artista para as questões da arquitetura, sobretudo como os seus museus criam espaço e permitem um diálogo com os lugares, neste caso o edifício de Álvaro Siza Vieira. Painted Photos (Fotografias Pintadas (2021-22) é uma série de impressões fotográficas, com superfícies pintadas a branco, onde sobre a fina camada de tinta são revelados detalhes contrastantes de arquiteturas, objetos, ou partes de corpos. Architectural Montages (Montagens Arquitetónicas) (2019-21) reúne um conjunto de fotografias a preto e branco, onde em cada uma estão sobrepostas duas imagens de arquiteturas diferentes, potenciando o diálogo entre elas. Todavia, é Museum of Shedding (Museu do Desprendimento) (2016) um dos museus mais fascinantes de Singh, por conter algumas peças de mobiliário – como uma cama, uma mesa, ou um banco – e revelar, num peso de papel sobre a secretária, as palavras Director (diretor), Registrar (conservador), e Curator (curador), enfatizando e questionando a presença destes três personagens imprescindíveis a um museu.

O que une o trabalho artístico de Singh são as pessoas que vai fotografando e que vão reaparecendo nas suas obras. Mona Ahmed (n.1935 – d. 2017, Deli) é uma das mais importantes e recorrentes, com um grande destaque nesta mostra, caso do vídeo Mona and Myself (Eu e Mona) (2013), a série Mona Montages (Montagens de Mona) (2021), e em fotografias de outras sequências em exibição. Singh conheceu-a em 1989, a propósito de uma reportagem acerca de eunucos na Índia, tendo se tornado uma das suas amigas mais próximas e uma influência na sua produção artística.

A dança, o corpo e o movimento são igualmente preponderantes no trabalho de Singh, tanto pela forma como retrata os seus personagens a abraçar, a acariciar, ou a dançar, quer através do seu enquadramento no espaço, mas também pelo modo como o espectador vivencia as suas narrativas. Ressalvando que a artista geralmente não usa tripé, colocando a sua câmara Hasselblad perto do ventre, estabelecendo um outro contacto visual e intimidade com o retratado. Na última galeria, em Let’s See (2021) vemos uma estrutura de exibição semelhante a uma grande prova de contacto, feita em madeira e pendurada na parede, onde se congregam imagens dos seus amigos a conversar, mulheres a arranjar os cabelos, ou retratos que nos olham diretamente, enfatizando o toque, o corpo e a intimidade como leitmotiv da sua obra. Em Museum of Tanpura (Museu da Tanpura) (2021), outra das suas grandes estruturas, destaca a tanpura, um instrumento de cordas, juntamente com fotografias de músicos. Ao lado, em Museum of Dance (Mother Loves to Dance) (Museu da Dança (A Mãe Adora Dançar)) (2021) homenageia Mona e a dança, em fotografias da sua amiga a dançar sozinha, ora com dançarinos, ora com a mãe e amigos de Singh, ou até com um famoso coreógrafo de Bollywood. Tudo isso enquanto nós vamos dançando em torno do museu da artista, experienciando performativamente o seu trabalho artístico, rico em pluralidades e caminhos, simultaneamente intimista e verdadeiro, sobretudo consciente do papel que a memória ocupa nas nossas vidas. Concluindo com as palavras da comissária da exposição: “Como os nossos corpos gostam de se envolver uns com os outros; como nos acariciamos e somos acariciados; como tocamos e somos tocados; como amamos e somos amados”[2].

Dayanita Singh: Dançando com a minha Câmara está patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves até 3 de março de 2024.

 

[1] Rosenthal, S. (2023). Dançando com a minha câmara. Em D. Singh, I. Grosso, & J. Bravo (con.), Dayanita Singh: A aventura de uma fotógrafa (pp. 47-84). Porto: Fundação de Serralves. p. 61.
[2] Id. Ibid, p. 62.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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