Tronos Tombados, Novos Colonos: a reflexão de Toy Boy sobre a duradoura colonização das mentes em Angola
Na exposição inaugurada a 12 de janeiro no Centro de Cultura Contemporânea 13 da Cooperativa de Comunicação e Cultura de Torres Vedras, Toy Boy, artista angolano nascido em 1976 e crescido entre o seu bairro/musseque e toda a cidade de Luanda, reflete sofre os efeitos e cicatrizes que a colonização de Angola ao longo de séculos e o período conturbado do pós-independência deixaram na tão diversa e desigual sociedade angolana, e que perduram até hoje. Para percebermos todas as camadas que se foram sobrepondo e construíram o que o artista chama de auto-colonização ou atitude colonial entre africanos, “onde o opressor e colonizador é o preto para com o preto”[1], torna-se relevante esboçar de forma breve o cenário histórico, político, económico, social e cultural que originou essa estranha realidade e serviu de mote para a criação das obras expostas.
Fruto de questões administrativas e da fragilidade da presença portuguesa nas colónias africanas e, em particular, em Angola, revelou-se necessária a participação de elementos negros e mestiços (na sua maioria, filhos de europeus com mulheres africanas e nascidos em Angola) na administração colonial, no exército e no clero, no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX. A formação desta elite “civilizada” em Luanda, em que estes africanos juntavam-se aos poucos brancos colonos para lucrar com o comércio de escravos (terminado em meados do século XIX, mas, de certa forma, substituído por trabalho compulsório), era então marcada mais pelos costumes e conformidade com certos princípios europeus do que por um racismo declarado – “O domínio de códigos culturais europeus, e não a cor da pele, era elemento central para o estabelecimento de diferenças entre as populações da colónia, pautadas no reconhecimento social e nos costumes”[2]. No entanto, como é óbvio, a cor da pele tinha preponderância na escravização de parte da população e, mais tarde, da discriminação sistémica e legalizada.
Ao longo da história da colonização, foi-se verificando a alternância entre duas estratégias dos portugueses para controlar e dominar os povos colonizados: a de dividir para reinar e a de juntar para enganar. A primeira traduz-se justamente na estratificação descrita acima, com a separação entre uma elite angolana europeizada, composta pelos denominados “assimilados”, e a população negra nativa (menos aculturada pelos colonos e mais discriminada e votada à miséria), a quem chamavam “indígenas”. O apogeu desta clivagem, após a abolição da escravatura, talvez tenha tido início a partir do final do século XIX, quando foi instituída a política do indigenato, que legitimava e regulamentava esta distinção. Deste modo, a própria população colonizada estava dividida, além das diferenças étnicas e culturais já existentes no país, sendo estas desencorajadas e desvalorizadas (ou com manifestações até proibidas). Esta foi a forma que o colonizador encontrou de recrutar aliados entre os colonizados e incentivá-los ao preconceito e hostilidade contra os seus compatriotas.
Por outro lado, a partir dos anos 50, começa a vislumbrar-se uma transformação desta divisão, escondendo uma instrumentalização da(s) cultura(s) angolana(s) em benefício do programa político de Salazar. Num contexto de nascimento dos primeiros movimentos de libertação e resistência contra a colonização e pela independência, a par da desejada entrada de Portugal na ONU e como resposta a críticas sobre a insistência em continuar a ter colónias, surge a já mencionada estratégia de juntar para enganar. Integrados nesta estratégia estavam conceitos como “luso-tropicalismo”, “crioulidade”, “cosmopolitismo” e “hibridização cultural”, que concorriam para a defesa da tese de que Portugal não possuía colónias, mas sim “províncias ultramarinas” onde existia uma convivência e uma miscigenação saudáveis e enriquecedoras para todas as partes. As expressões culturais e artísticas tradicionais, populares e até tribais renascem assim no seio da colonização, como uma espécie de aculturação inversa para disfarçar a verdadeira.
Em certa medida, os movimentos de libertação, que iniciam a luta que culminará na guerra anti-colonial e na independência de Angola em 1975, com o Acordo de Alvor, também instrumentalizam o racismo institucionalizado que se tinha vindo a formar e as diversidades ricas entre etnias e culturas que coabitavam (e algumas ainda resistem) em Angola. Esta realidade deteta-se na própria constituição dos grupos de libertação e resistência – “(…) Cada grupo tem a sua língua e estes grupos vão constituir a sua identidade etnopolítica”, descreve Paulo Faria. “Na geografia política nacional pré-independência estava a FNLA [Frente Nacional de Libertação de Angola] representando os bacongos, o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] os ambundos e os ovimbundos não tinham representação, daí a criação da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola]”, sublinha. “(…) O MPLA tem inicialmente a pretensão de absorver os ambundos, mas numa fase posterior a tendência foi ser ‘um amplo movimento’ e absorver vários grupos. Temos a emergência de três grupos políticos com uma forte matriz identitária na sua vertente étnico-racial. A Angola pós-1975 vai ser o produto disso (…) e uma das grandes bandeiras foi vender a ideia de ‘um só povo, uma só nação’, fazendo um corte com uma Angola que tem ‘este mosaico multiétnico e racial’”[3]. São estes os tronos tombados de que Toy Boy fala na sua exposição e que pintou e esculpiu. Os novos colonos são não apenas os membros do partido único que se estabeleceu no poder aquando da independência (o MPLA), cujo presidente com maior longevidade – José Eduardo dos Santos – esteve no poder ainda mais anos do que António de Oliveira Salazar, mas também as empresas capitalistas estrangeiras que exploram os recursos naturais de Angola e o mercado paralelo (kandonga) cujo crescimento o governo foi permitindo (e, muitas vezes, dele usufruindo).
Assim, Angola continuou a ser marcada pela violência herdada dos tempos da colonização, com conflitos armados entre 1975 e 2002, pela desigualdade e prevalência de uma discriminação institucionalizada (que ainda se verifica, por exemplo, a nível económico, social e educacional) – “Em parte, este fenómeno explica-se com a síndrome que permanece no inconsciente colectivo de povos que foram colonizados — o sentimento de dominado passa de geração em geração. É isso que (…) leva [Elias Isaac] a dizer: ‘Até certo ponto, houve independência, mas não descolonização das mentes.’”[4]. Este fenómeno está intimamente ligado ao conceito de “memória cultural”, que compreende as três dimensões temporais, estabelecendo um vínculo entre passado, presente e futuro, e corresponde a recordações objetivadas e institucionalizadas, com uma longa durabilidade e caráter simbólico, transpondo-se e reincorporando-se ao longo de gerações. Este é o tipo de memória que pode explicar, por exemplo, a influência assumida por um artista afro-americano como Jean-Michel Basquiat de aspetos das culturas haitiana, porto-riquenha e das suas raízes africanas, apesar de ter tido pouco contacto com essas realidades, assim como o cruzamento de referências nas obras de Toy Boy. Por um lado, aproximam-se das expressões locais através das cores quentes, dos corpos femininos simplificados e estilizados (quase abstratos), dos rostos dos reis e rainhas irónicos (com tronos tombados) que trazem certas reminiscências das máscaras africanas primitivas ou tribais, e da utilização de materiais retirados do território angolano (ferrugens, lixos, objetos descartados), visíveis nas esculturas e baixos-relevos de ferrugens sobre madeira, na exposição em questão. Por outro lado, foge a estereótipos ou a postais turísticos de Luanda e usa a seu favor uma propositada miscigenação com a arte ocidental, bebendo de movimentos como a Pop Art e o neoexpressionismo, sendo Basquiat um dos artistas com algumas obras que rimam até certo ponto com outras de Toy Boy, bem como correntes neo-dadaístas no que concerne aos ready-mades e à escolha e assemblage de materiais do quotidiano desprezados.
Ao fazer uma crítica social e política do estado das coisas em Angola e, particularmente, na sua cidade (Luanda), Toy Boy convida o público a, com ele, desmistificar uma cultura híbrida e um cosmopolitismo que no passado tiveram conotações e efeitos negativos. O artista mostra-nos que, em vez de um caos aparente, essa miscigenação pode ser uma ponte para o equilíbrio profícuo entre as culturas locais e as influências que estas sofrem (ou ganham?) de fora, entre um sentimento de pertença ao seu musseque (bairro) e a cidade, entre a cidade e todo o país, e entre Angola e o exterior. Tudo isto se houver espaço para o nascimento de uma vontade política e social, mas também uma progressiva “descolonização das mentes”, acompanhada da eliminação da discriminação ainda existente e da desigualdade marcante. Como Jimi Hendrix dizia utopicamente, “quando o poder do amor superar o amor pelo poder, o mundo conhecerá a paz”.
Tronos Tombados, Novos Colonos, de Toy Boy, está patente até 24 de fevereiro no Centro de Cultura Contemporânea 13 (CCC).
[1] Folha de sala da exposição.
[2] Marzano, Andrea. (2020). “Angola: apontamentos para uma História Social da Cultura”. Africana Studia, nº 34. Porto: Edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.
[3] Gorjão Henriques, Joana. (2015). Angola – “Houve independência mas não descolonização das mentes”. Público, em parceria com Fundação Francisco Manuel dos Santos.
[4] Idem.