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URDI: Um evento de afetos

As cores são vibrantes, o ar é tépido e as pessoas generosas e empáticas, inspirando familiaridade. As acácias estão por toda a parte, enormes e adultas, com vários pássaros a pular de ramo em ramo e abelhas a polinizar.

O Mindelo é sem dúvida uma cidade musical, tranquila e simultaneamente dotada de uma energia contagiante. Senti-me em casa.

Durante cinco dias o centro do Mindelo transforma-se para acolher arte, design e artesanato. Criadores e artesãos mostram o seu trabalho e passam o seu conhecimento aos mais jovens, construindo pilares para a preservação da identidade e construção da memória e do saber fazer, num evento intitulado URDI. Urdi, do verbo urdir; urdir do verbo tecer, que nele celebra a arte e cultura cabo-verdianas. Dos concertos às grandes conversas que, no final, se transformam num livro, e cujo tema deste ano foi Emigração na Poética das Ilhas, a URDI não se esgota na feira e existe toda uma dinâmica que envolve a cidade e o país. Para as conversas foram convidados vários oradores, não só cabo-verdianos como de diversas geografias, com conhecimento científico nos temas a debate sobre as importantes questões que envolvem a emigração, fundamental num território como Cabo Verde, caraterizado pela falta de fixação da população e onde se assiste a um ir e vir constante.

Da URDI fazem também parte uma exposição que mapeia três espaços na cidade; uma residência artística que se transforma numa mostra; a exposição Urdi Júnior e a exposição 6.1, uma retrospetiva do concurso de design, exposta em várias montras das lojas da cidade, numa perspetiva de ampliar a visibilidade do trabalho que é feito diariamente no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD). Toda esta dinâmica promove e estimula a criação artística tão própria de São Vicente: a última ilha a ser povoada, na sua maioria por pessoas de Santo Antão e de São Nicolau. “O povoamento inicia-se quando os ingleses descobrem a baía do Porto Grande e o tornam num interposto do tráfego de carvão, o que fazia com que os barcos, nas suas travessias transatlânticas, aqui aportassem para abastecer de carvão. E, portanto, o Mindelo tem uma história, em si, diferente, dada a forte influência da cultura inglesa. É por isso caraterizado pela sua cultura cinematográfica, fotográfica e pelos jogos do críquete e golfe numa zona chamada Mato Inglês. Tudo isto vai fazer com que a ilha de São Vicente tenha uma vivência cosmopolita, composta por uma dinâmica cultural e intelectual que não acontece com tanta incidência nas outras ilhas, uma vez que não tiveram a mesma estrutura de construção geográfica, social e económica”, revelou Artur Marçal, diretor do CNAD.

Abrindo espaço a um diálogo entre o ministro da cultura Abraão Vicente, Artur Marçal e o coreógrafo António Tavares (diretor do Centro Cultural do Mindelo – CCM), todo o evento é pensado de forma a alcançar não só as várias ilhas do arquipélago, como todo um palco de intervenientes e espectadores internacional, que se desloca ao Mindelo anualmente para assistir e fazer parte da URDI. “Enquanto diretor do CCM e habitante da ilha, sinto, hoje, no oitavo aniversário da URDI, que o evento representa já um marco na cidade, no pensamento contemporâneo e na vanguarda desta ilha e deste país. Eu faço a analogia da ilha com um jogo de bilhar. E o bilhar neste caso tem bolas diferentes e diversas importâncias no tocar. Neste caso, São Vicente funciona como uma ‘ilha bola branca’, que vai tocando nas outras ilhas e agindo, assim, na provocação do novo, assumindo uma grande relevância na contaminação do arquipélago. Todos os 22 municípios participam na URDI e, sendo repetentes, sentem orgulho em participar. Nós sentimos o resultado da nossa atuação, através da resposta que eles dão diretamente, num trabalho que vai ganhando consistência. Conseguimos criar uma linha que premeia a ideia do pensamento contemporâneo, afro-contemporâneo, que se disputa em todas as cidades, mas não esperávamos que, a partir de um evento tão modesto, com poucos recursos, alcançássemos tanto impacto internacional”, referiu António Tavares.

Numa proposta de abater os muros e abrir o pátio para a cidade, em diálogo com a Casa Senador Vera Cruz, nasce o edifício do CNAD (espaço central à URDI), pelas mãos dos Ramos Castellano Arquitectos. Foi através de uma profusão de tampas de bidons coloridas que os arquitetos deram uma segunda pele ao edifício, tornando-o icónico na cidade e no país, sendo a utilização destas tampas alusiva à realidade e identidade de Cabo Verde, uma vez que é desta forma que lhes chega a maioria dos produtos, como roupa, comida entre outros. As mesmas tampas revelam uma partitura composta pelo músico cabo-verdiano Vasco Martins, na qual cada cor é uma nota musical.

Constituindo atualmente um marco arquitectónico na cidade, pela forma como marca a paisagem, o CNAD é um espaço de convívio e união e cuja história nasce em 1976 pelas mãos dos artistas Manuel Figueira, Luísa Queirós e Bela Duarte com a fundação da Cooperativa Resistência. Desde a sua criação que confluem no mesmo espaço jovens artistas e mestres artesãos provenientes de todas as ilhas, numa simbiose e encontro de saberes entre arte, artesanato e design. “Estamos a dar continuidade ao projeto de uma forma natural e com uma visão mais contemporânea. Tendo em conta que os desafios da década de 70 e 80 não são os mesmos desafios de agora, por um lado temos que ancorar a matriz do artesanato ou da cultura popular e, por outro, procurar inovar, do ponto de vista formal. E é por isso que a URDI e a residência artística têm por objetivo proporcionar essas trocas de experiências e de conhecimentos, criando momentos de partilha entre diversos criadores, artesãos e artistas”, revelou Artur Marçal.

“O Batik é como a tecelagem, uma oportunidade de contar histórias através da poética da imagem.” – Marcelino Santos

Um Teatro do Mundo é o título da exposição resultante de três semanas de residência Batik e que nela junta o trabalho final de quatro mestres artesãos (Manuel Fortes, Marcelino Santos, Sota – Saturnino Coronel e Wagane Guéye) e três possíveis futuras mestras (Risilene Fortes, Karine Patrício e Petra Preta – Sara Fonseca). Ao longo da residência, trabalharam lado a lado para aprender, ensinar e desenvolver, através de técnicas de batik ancestrais, uma representação do conceito predefinido de “(e)migração”, num resultado final único na interpretação de cada criador. Carlos Noronha Feio, curador da exposição, acompanhou o trabalho de perto, trocando impressões com os vários intervenientes, numa perspetiva de entender as suas motivações, ideias e formalização para assim desenhar o conceito curatorial da exposição e todo caráter cenográfico que a envolve numa das salas do CCM.

Sendo uma técnica de estamparia ou tinturaria ancestral, que percorre o mundo há vários séculos, em Cabo Verde só foi introduzida no início da década de 80 e desenvolvida pelo meio da aplicação de uma pasta de farinha, cal e água, ao passo que noutras regiões o material usado é principalmente a cera, como no caso do Senegal, de onde chega Wagane Guéye. O artista e curador chega ao Mindelo não só para aprender a técnica cabo-verdiana, como para passar o seu conhecimento na produção de batik através da cera. Esta partilha do conhecimento e na generosidade com que se aprende e ensina, levou Marcelino Santos, mestre artesão que esteve na origem da introdução da técnica batik em São Vicente, a participar na residência, com o objetivo de ensinar e aprender com Guéye. Segundo referiu: “o batik é como a tecelagem, uma oportunidade de contar histórias através da poética da imagem”.

A lógica expositiva partiu da técnica em si, começando por mostrar um pouco do que é o teatro do mundo com uma cenografia especificamente concebida para a exposição. Uma grande cortina preta faz alusão a um palco, e é este o palco que acolhe a maioria das peças produzidas na residência. As restantes, suspensas no teto, flutuam no espaço, criando toda uma dialética expositiva de circularidade e imersão no trabalho, numa forma intimista de observar a arte a partir de várias perspetivas. “Era necessário albergar todos estes trabalhos muito diversos e ao mesmo tempo dar-lhes uma homogeneidade, criando uma atmosfera que mostre que esta técnica ancestral é também uma técnica que se pode usar no campo das artes”, conta Noronha Feio. Separadas numa outra sala com menos luz, devido a questões de conservação, estão duas obras de Manuel Figueira e João Fortes (provenientes do acervo do CNAD), numa homenagem à primeira e à segunda geração de mestres artesãos. “Prestamos essa homenagem porque, se estamos a falar da ideia de emigrações e da migração da própria técnica para o arquipélago, não podemos perder a oportunidade de mostrar o que se alcançou nas primeiras gerações. Foi para mim determinante mostrar a quem está a produzir agora o trabalho destes mestres, pois é muito importante relembrar que não se deve cair no erro de simplificar uma técnica quando esta já chegou a um expoente tão alto na sua capacidade”. Segundo escreveu no texto curatorial da exposição, “Um teatro do mundo é um espaço onde interpretando ‘(e)migração’, se conta e documenta por línguas diversas, do design gráfico à música, as estórias e as histórias que connosco viajam.”

Pasárgada de Irineu Destourelles

Patente em três locais distintos – a Gare Marítima do Mindelo, Museu do Mar e Centro Cultural do Mindelo –, Pasárgada de Irineu Destourelles mostra o processo contínuo de reflexão do artista sobre a experiência de existir como negro, crioulo, africano e imigrante em cidades como Lisboa, Londres e Glasgow, onde tem vivido desde os quatro anos de idade.

A exposição acaba por fazer um mapeamento da cidade, sendo que na Gare marítima todos os que saem ou entram do barco que liga São Vicente às outras ilhas assistem e confrontam-se com o trabalho Simultaneously Self-Caressing and Self Punishing, numa série de ações performativas registadas em vídeo entre 2005 e 2006. Nesta vídeo performance em que o artista acarinha uma parte da sua face ao passo que agride a outra, a parte sonora é pontuada com sons de pessoas que reagem às agressões que o personagem inflige a si próprio, através de aplausos, risos ou comentários. Neste trabalho, o artista reflete sobre a escrita de Franz Fanon referente ao universo psíquico do colonizado e ex-colonizado face à cultura do colonizador.

No último piso do Museu do Mar, o vídeo em slow motion Image of an Outsider with Popular Songs and Other Popular Sounds mostra uma fotografia do artista enquanto criança numa escola primária nos arredores de Lisboa. O vídeo começa por revelar uma criança cujo semblante doce e ingénuo se torna diabólico com o passar dos minutos. A imagem manipulada resulta de uma reflexão sobre a sua infância, em que parte dela foi muito boa, mas outra parte foi também problemática, “ao aperceber-me na minha ida para Lisboa, que era uma criança diferente devido ao facto de ser negro.” Segue-se o Centro Cultural do Mindelo, onde está patente uma obra que integra a coleção do CAM – Fundação Calouste Gulbenkian: Several Ways of Falling Ordered Differently mostra uma imagem com 35 sequências refletindo igualmente a sua experiência de viver em Portugal. Registadas na horta do pai, mostram várias quedas do artista e organizadas por ordens diferentes. Segundo referencia na folha de sala, “trata-se de um espaço de exercício de memória que o seu pai tem utilizado para cultivar os vegetais tropicais que plantava e consumia durante a sua juventude em Cabo Verde”. Num corpo de trabalho intemporal e autorreferencial, Destourelles reflete sobre identidade, ambiguidade, exclusão e inclusão, acabando por fazer vídeos de caráter pessoal, embora o processo criativo seja relativamente abstrato. Dada a forte componente estética, estas obras, podem viver autonomamente. Segundo o artista, “os vídeos podem viver sem mim e essa é uma caraterística do meu trabalho, deixando a narrativa em aberto e dando liberdade de percepção a quem o frui”.

O CNAD como um centro Expositivo, de Pesquisa e de Investigação

Com uma importante biblioteca e vertente ligada à pesquisa e investigação na teorização das várias questões que relacionam arte e cultura em Cabo Verde, o CNAD é também um espaço expositivo, que está atualmente a homenagear os seus artistas fundadores. Terminou recentemente a exposição Ilha em IV Atos, sobre a artista Luísa Queiroz, com curadoria de Irlando Ferreira, tendo inaugurado a 14 de dezembro a exposição Manuel Figueira – Desenhar a Resistência com curadoria de Paula Nascimento e Ângelo Lopes. Seguir-se-á a exposição sobre Bela Duarte, com curadoria de António Pinto Ribeiro, a inaugurar em abril.

O projeto é pensado a partir da cidade do Mindelo, mas com os olhos postos no mundo, numa perspetiva de dar a conhecer o que fazem internacionalmente e, em simultâneo, receber o que o mundo tem para lhes dar. “É por isso que fazemos estes intercâmbios com pessoas que vêm e nos trazem o seu conhecimento e do nosso lado a possibilidade de levarem para outras paragens o que aqui se produz”, revela Artur Marçal. Como exemplos, uma exposição do mestre Marcelino que irá inaugurar brevemente num museu em Portugal, ou a exposição Arkipélag! do artista Carlos Noronha Feio, que irá em breve para Lagos na Nigéria. Assim a vida vai acontecendo, por vezes “não na dimensão que nós desejávamos, mas dentro daquelas que são as nossas capacidades humanas e intelectuais, e acima de tudo financeiras. Se não sonharmos e não tivermos ousadia nada será possível. É devido a toda a partilha que vamos construindo uma rede de parceiros e amigos. Até então, nunca deixámos de fazer nenhum projeto e fazemo-lo porque entendemos este trabalho como uma missão. Como dizia Manuel Figueira: ‘nós temos que estar preparados para responder às necessidades da nossa nação’.”

E assim deixamos o Mindelo, com uma enorme vontade de criar projetos e intercâmbios, e uma mochila cheia de música e autores cabo-verdianos para que o espírito da ilha permaneça nas nossas mentes até à próxima visita. Como referimos no final do lançamento da Umbigo no terraço do CNAD: para o ano, à mesma hora, em Santo Antão!

Começou no jornalismo e ao longo dos anos tem feito vários cursos de arte contemporânea, entre os quais Temas da História da Arte do Século XX (Fundação Serralves), workshop de Curadoria na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, Estética (Ar.Co) e História da Fotografia na mesma Instituição e uma Pós-Graduação em Curadoria na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É membro fundador e diretora da revista Umbigo, criada em 2002, com a qual desenvolveu vários projetos curatoriais, entre eles a exposição Entre Limite e a Audácia de Miguel Palma na galeria Fábulas, The Difference de Andrea Splisgar no Palácio de Santa Catarina, a exposição Pieces and Parts na Plataforma Revólver, Lisboa, Pierre Barbrel – Dissociation no Espaço Camões da Sá da Costa, Robe de contact (lys) do artista Jean François-Krebs na Galeria Sá da Costa. Em 2023 fez a curadoria das exposições Unwinding de Theodore Ereira-Guyer e Sam Llewellyn-Jones na Galeria Sá da Costa e A Face is a Mask... de Pedro Valdez Cardoso na Brotéria. Foi júri e curadora da Exposição de Joalharia Contemporânea On the Other Hand, comemorativa do 5º aniversário da PIN (Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea), na Galeria Reverso (Lisboa), Galeria Adorna Corações (Porto) e no Simpósio Gray Area na Galeria Medellein (Cidade do México). Em 2018 foi júri do prémio ENSA Arte em Luanda. Também para a revista Umbigo coordenou a edição do livro Coordenadas do Corpo na Arte Contemporânea, uma coleção que reúne um ensaio de Bárbara Coutinho e diversos trabalhos artísticos, muitos deles desenvolvidos propositadamente para o livro, num conjunto de trabalhos que representam uma pequena amostra das preocupações filosóficas e estéticas de um grupo de artistas. Em 2018 juntamente com António Néu (diretor de arte da revista Umbigo) criou a Plataforma UmbigoLAB, uma rede de networking para artistas que promove a sinergia entre estes e os agentes do meio (curadores, diretores de museus, galeristas, colecionadores e instituições).

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