Assobio de Sérgio: prelúdio para Desenhar a Resistência
No meio artístico mindelense, é usual utilizarmos a expressão “mergulhar na obra de”; no caso de Manuel Figueira, temos de nos acautelar, dada a profundidade da expedição. A expetativa era pressentida no ar, ao ouvir a melodia do assobio de Sérgio Figueira e do dedilhar de Voginha – pela segunda vez, no mesmo ano, no mesmo lugar.
Depois da inauguração da exposição da sua mãe, Luísa Queirós, em julho, o assobio de Sérgio repetia-se no pátio do CNAD; uma sonoridade que nos transportava até à Bossa Nova de outros tempos e de outras paragens. Agora, em dezembro, tudo parecia mais ventoso, seco, escuro e nostálgico: eram as alterações próprias dos ciclos anuais, agravadas pela partida recente de Manuel Figueira.
Enquanto ouvia o Sérgio, pensava como deveria ser especial (ou esmagador) ser filho único de dois personagens tão singulares; dois dos três fundadores de uma instituição pioneira num Cabo Verde pós-independente, sobre a qual se erguia o espaço – físico e conceptual – que tínhamos o privilégio de ocupar, enquanto o assobio de Sérgio marcava o prelúdio do profundo mergulho que se seguiria.
A Cooperativa Resistência seria fundada por eles, Manuel Figueira, Luísa Queirós e Bela Duarte, em 1976, chegados a Cabo Verde depois dos estudos realizados em Portugal, onde se conheceram e reconheceram nas motivações e ideologias. Luísa, única portuguesa do coletivo, juntara-se a Manuel enquanto casal, ao grupo enquanto resistência, e a Cabo Verde enquanto nação. Ao longo dos tempos, os princípios orientadores de levantamento e documentação do artesanato cabo-verdiano deram lugar ao Centro Nacional de Artesanato e, nos últimos anos, à reconversão atual da instituição em CNAD – Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design.
O assobio de Sérgio cessava e, mesmo que algum dos presentes conhecesse a totalidade das obras que iriam estar expostas, vê-las reunidas no tempo e no espaço apertava e secava-nos a garganta.
O Búzio na Laginha recebia-nos e fazia-nos frente, à entrada da Galeria Luísa Queirós, mantendo-se na mesma linha de ação onde Luísa o colocara, quando, em 2000, escrevera o manifesto Quem ê q’morré?. Pela primeira vez em mais de 3 décadas, este batik de grande dimensão era exibido em Cabo Verde. Recentemente recuperado pelo CNAD, depois de ter andado perdido em Portugal desde 1989 – para onde tinha sido levado no contexto da 1.ª Feira Lusófona de Arganil -, recebia quem chegava à exposição através da galeria de nome Luísa Queirós, prestando-lhe homenagem e concedendo resposta – tardia, porém, positiva – ao manifesto que escrevera pelo retorno das peças a Cabo Verde.
Mocidade portuguesa em parada, de 1968, demarca o posicionamento de Manuel perante a vida, onde desenhar a resistência foi uma constante. Este funciona como um elemento charneira de entrada na exposição, onde mesmo o ano da sua produção é simbólico, coincidindo temporalmente com as Revoltas Estudantis em Paris e com os Movimentos de Libertação africanos.
Nesta peça, é representado um homem onde se reconhecem traços fisionómicos do autor, de olhos fechados, amordaçado, encolhido e de boina portuguesa colocada sobre a cabeça. Ao descontruirmos a forma, somos levados a questionar se a figura humana representada se encontra, de facto, sozinha, adivinhando-se a existência de pelo menos mais duas pessoas. O movimento dado pela representação de diferentes planos é recorrente na obra de Manuel Figueira, onde o autor acrescenta camadas ao desenho, permitindo que o possamos apreender de formas diferentes e questionando, também, o nosso próprio entendimento mais imediato da obra.
O simbolismo de Mocidade portuguesa em parada prepara-nos para a imersão no espaço mais desafogado da exposição, onde desde logo se destaca a temática de Capitão Ambrósio, abordada através de estudos desenvolvidos para a ilustração da obra de Gabriel Mariano. Ao longo da parede lateral, diversas narrativas se estabelecem; a temática do dragoeiro com recurso a técnicas mistas de desenho, pintura e colagem; o quotidiano familiar com representação da figura humana através da caricatura; a Casa Figueira, representada com o seu patriarca, José Figueira, através de uma tela que composta a partir de fragmentos, que se cosem como fragmentos de memória. Por fim, uma obra com recurso à fixação de alguns fragmentos cerâmicos, no qual reconhecemos o edifício onde a Cooperativa Resistência se instalou em 1976, o ex-Consulado inglês, demolido recentemente.
Na extremidade da Galeria Luísa Queirós, um espaço de intimidade reveste-se a vermelho, onde, através de excertos de entrevistas realizadas ao autor, ouvimos sobre a ideologia que o acompanhou ao longo da vida – uma politização feita por influência de Abílio Duarte e Baltasar Lopes, também responsáveis por ter enveredado nas Belas Artes em Lisboa, onde conhece Luísa. Chegados de Portugal com Bela Duarte, incentivados pelo clima pós 25 de Abril, traziam vontade de “fazer coisas que não fossem banais”, tendo, através da Cooperativa Resistência / CNA explorado uma metodologia de “transmissão de conhecimento das artes plásticas em geral, através do contacto com os artesãos”. Relativamente à sua produção individual, diz ter por base observação de rua, porém, recorrendo ao humor e ao ridículo para o representar. Neste espaço de intimidade, somos enquadrados por fragmentos de memórias e de discursos; de um lado, com fotografias de vivências na Cooperativa Resistência / CNA, que, pelas suas dimensões, nos convidam à aproximação, e, do lado oposto, fragmentos de escritos de Manuel Figueira e de Amílcar Cabral, como que em diálogo.
Deixando esse recanto – e antes de prosseguir para a Galeria Bela Duarte -, duas obras dedicadas aos mestres da tecelagem em Cabo Verde: em tons de azul, uma reinterpretação do desenho do Panu d’Terra homenageia o mestre da ilha de Santiago, Nhô Damásio; em tonalidade verde, uma composição reticulada remete-nos para o Calabedotch, dedicada ao mestre de Santo Antão, Nhô Griga.
Tomando fôlego, antes de enveredar pela galeria do piso superior, guardava no olhar a invasão do tom quente que predominava na curadoria da exposição desenvolvida entre Paula Nascimento e Ângelo Lopes. Era, para mim, evidente ter vivenciado um espaço profundamente distinto daquele que acolhera anteriormente a exposição de Luísa Queirós. Ainda que ocupando o mesmo lugar, na minha experiência, relacionava a cor adotada não só com duas curadorias muito diferentes, mas, também, com duas personalidades também elas distintas, exploradas através dos seus universos criativos, nos quais, por um lado, o mar, e por outro, a resistência, materializam-se através da cor escolhida.
Sem ter falado com Paula Nascimento ou Ângelo Lopes sobre pormenores da curadoria, interpreto o uso do vermelho como que em diálogo com a própria obra de Manuel Figueira, que a aplica sempre que nos “fala” de sentimentos fortes, sejam eles a ira, o caos, o narcisismo ou o desejo.
À entrada, na Galeria Bela Duarte, somos recebidos pela voz de Manuel Figueira que declama O Universo da Ilha, de Vasco Martins, criando assim uma continuidade com a relação de proximidade do discurso na primeira pessoa proferido na galeria anterior. Aqui, aguardava-nos uma experiência que me levaria a necessitar de muitas outras visitas até conseguir apreender novas parcelas de entendimento, provavelmente por se tratar “da parte mais densa da exposição”.
Voltado para a entrada, a famosa obra Mi ma Liz na cama ma c’es mama (Eu com a Liz na cama e as suas mamas) (2001) destaca-se pelo humor. A composição é feita com recurso ao rebatimento dos planos, sendo a cama representada em planta e os objetos em torno, em alçado. O azul e o esverdeado predominam, à exceção do topo superior, com o vermelho característico de muitas das obras do autor. Manuel encontra-se despido, com o rosto de perfil e traços caricaturados; Liz surge de forma realista e olha para fora do quadro, mirando o observador.
Diretamente com esta obra comunica Bob Taylor smoked Camelo Mi… um t’usa pincel Leonardo da Vinci (Bob Taylor fuma Camel, eu uso pincel Leonardo da Vinci), também de 2001. Nessa obra, podemos ver representados Manuel Figueira com o seu pincel, claramente debatendo com o galã do cinema norte americano, Bob Taylor, que traz o seu charuto Camel aceso. Na tela, dominam as tonalidades verdes e amarelas, sendo o vermelho aplicado na ponta e no fumo do charuto, e em outros pequenos detalhes, como no ventre de ambos. A posição dos corpos pode provocar leituras múltiplas, existindo entre eles a tensão de Bob a apertar Manuel, ainda sugerida pela aplicação do tom vermelho. Bob, à semelhança de Liz Taylor na obra anterior, é retratado realisticamente, como se fizessem ambos parte de um universo perfeito, onde a luz os ilumina tal como nos filmes dos anos 60. Manuel Figueira, no entanto, com traços caricaturados, olha para fora da tela.
A proximidade entre as duas obras convida-nos a construir uma narrativa em que Elisabeth Taylor, representada na tela anterior, e Manuel Figueira, representado nesta, estabelecem um olhar de cumplicidade, uma vez que se encontram frente-a-frente e que ambos olham para fora da composição.
Ultrapassando o primeiro painel divisório, encontramos narrativas e diálogos ao nível das temáticas, técnicas, dimensões e mancha cromática. Na lateral, comunicam entre si cenas do quotidiano mindelense, sempre caricaturando os personagens, onde a representação se faz a partir do gozo, fazendo jus à forma como Manuel Figueira tem sido apelidado: um verdadeiro cronista da cidade do Mindelo. Também pormenores de arquitetura são explorados com grande detalhe e realismo, contrastando com a forma como a figura humana é recorrentemente representada.
Três telas destacam-se – o Pacto para Além da morte, Nhô Fula, de 2004, e Ti Ganga – o ovo e – Ti Lobe -, presentes num desdobrável publicado por Manuel Figueira em 2003, de nome …de como das histórias do povo se fez arte, onde o autor reúne 7 obras com base na tradição oral de Cabo Verde e nos escritos de seu tio, Manuel Bonaparte Figueira, em 1968. O Pacto para além da morte, de 2003, e Nhô Fula, de 2004, são duas obras que, na minha perspetiva, assinalam o clímax da produção artística do autor. No caso de Nhô Fula, as tonalidades são intensas, dominando o azul, com detalhes que oscilam entre os verdes e o lilás. Os tons frios, associados ao movimento representado através das linhas e manchas cromáticas sobrepostas, criam uma composição complexa, enigmática e densa. O mesmo nível de complexidade observa-se no Pacto para além da morte, onde as tonalidades são mais variadas, predominando os cinzentos, os acastanhados, e oscilando, ainda, entre os esverdeados, avermelhados, azulados.
No final da galeria, encontramos duas telas diferentes, abstratas, com figuras geométricas e aguadas mais suaves, relativamente às quais os curadores questionam se “estariam terminadas”, ou seriam “um anúncio do que estaria por vir”.
Estamos em 2022. Encontramos uma nova face de Manuel Figueira.
De frente para estas, uma composição de 6 fotografias de tamanho reduzido convidam-nos, uma vez mais, à aproximação. Como que através de um furo de alfinete, conseguimos ver registos do atelier de Manuel Figueira; um lugar que adivinhamos ser o espaço físico deixado por Manuel, depois de Manuel ter deixado o seu espaço físico.
Revisitei dezenas de vezes a exposição. Pela proximidade, permito-me continuar a visitá-la quase que diariamente. Em conformidade com a hora do dia, senti alterações na forma como percecionei cada obra e cada palavra que li e/ou que ouvi. Variadas vezes escutei Manuel falar de Luísa e de Bela nos excertos de reportagens, vi o seu ar inquieto e austero da juventude explicando os princípios do CNA e vi a serenidade do olhar maduro de tempos em que a pele se viu invadida pelos sinais de velhice.
Quando faz escuro lá fora, recordo o vento seco daquele fim de tarde de dezembro, quando todos nós, de olhos espelhados pela lágrima, ouvíamos o entoar do assobio de Sérgio, como um prelúdio para o mergulho em profundidade que estávamos prestes a fazer. Por vezes, quando o entardecer é mais agreste, adivinho no som produzido pelo vento também o ressoar do assobio de Sérgio que nos chega além-mar.
A exposição Desenhar a resistência, com curadoria de Paula Nascimento e Ângelo Lopes, está patente no CNAD, em Cabo Verde, até 4 de abril.