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Cardinal Virtue: Faisal Abdu’Allah revisita as virtudes de Platão

Faisal Abdu’Allah apresenta-se no HANGAR – Centro de Investigação Artística com cinco tapeçarias jacquard, timidamente iluminadas por uma luz azul filtrada. Aliás, o azul elétrico intenso é uma constante na sala, também porque preenche o fundo de três das composições, contrastando com a escala de cinza das outras duas. Cardinal Virtue é sobretudo um diálogo denso, que se compõe por camadas e camadas de história, também de fios e da tecelagem de signos, símbolos e significados, desconstruindo estereótipos. Duas séries, que impressionam pela escala, ornamentam o espaço: peças horizontais (o díptico Last Supper I e II, 2012) e três verticais esguias (série Prince Hall, 2020-2021).

O tecido jacquard deve a sua origem a Joseph Marie Jacquard, que, em 1804, desenvolveu um tear mecânico programável, revolucionando a indústria têxtil, na época de todas as transformações. Uma evolução técnica que possibilita um tecido de padrões complexos, teias de múltiplos fios, texturas emaranhadas e, na contemporaneidade, a reprodução de imagens de definição fotográfica. Esse é o detalhe das peças de Faisal Abdu’Allah: “a olho nu”, é uma imagem minuciosamente definida que reproduz uma fotografia ensaiada (a base da sua produção artística); melhor observado, percebemos que há a opacidade de um tecido que pesa e obscurece. A utilização do tecido que é em simultâneo tela e película de filme não é só um suporte para o seu manifesto, como é uma analogia – daí a pertinente referência à origem da técnica.

Se as tapeçarias abrilhantaram castelos medievais e palácios renascentistas, as cortinas cobrem e protegem da luz. Uma luz que, na cultura greco-romana, é a via rápida entre os olhos e o cérebro, representando precisamente a claridade, a clarividência e a verdade. Este é o jogo de sentidos que o artista procura nas três peças verticais da série Prince Hall. Retratos de corpo inteiro (também eles, os retratos, são representações clássicas do corpo) de três membros da maçonaria irrepreensivelmente trajados, adornados e dourados por conotações e denotações, cuja linguagem não se descodifica de imediato. As figuras destacam-se do fundo, um plano como referimos azul elétrico, pigmento raro, exclusivo a faraós. Quem são estes homens? Serão mortais? Que objetos são estes? O que nos escondem? O que representam? Do outro lado da sala, o diálogo é outro, mas mantém a toada teológica e misteriosa, além de uma densidade multi-interpretativa entre o que está visível e invisível, abaixo e acima da mesa, coberto ou descoberto pelo traje, o que a história oculta e o que a história revela (e as perguntas mantêm-se). O díptico de duas tapeçarias (um objeto composto por duas partes complementares, o próprio título o sublinha) reproduz a Última Ceia de Leonardo Da Vinci (uma vez mais uma pintura da representação clássica), mas, em vez da cena bíblica, os intervenientes Judeus são substituídos na primeira tapeçaria por Afro-britânicos Muçulmanos (Last Supper I, 2012) e, na segunda, por “citadinos contemporâneos” que o artista nos quer fazer acreditar terem saído de filme de gangsters (Last Supper II, 2012). 

Faisal Abdu’Allah subverte os arquétipos e os cânones impostos pela história da arte ocidental, mas não nega o passado, introduz é uma reflexão íntima e pessoal, no sentido autobiográfico – um retorno e procura das suas origens. Cardinal Virtue pode ter como ponto de partida as virtudes de Platão na sociedade contemporânea ocidental, mas caminha pela genealogia, pela herança teológica e pela cultura visual dos signos, que se moldam e transformam.

Cardinal Virtue está patente até dia 24 de fevereiro no HANGAR – Centro de Investigação Artística, e não prescinde de uma leitura atenta do excerto do ensaio A Reversão da Fé de Bárbaro Martínez-Ruiz (Faisal Abdu’Allah: the Art of Dislocation, Atlantic Center of Modern Art, 2012).

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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