Visitante Ocasional no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra
Um corpo entre corpos. Um modelo social sem contrato. É assim que o corpo do espectador, esse visitante ocasional, se imiscui neste tecido metaforicamente orgânico: a exposição. A arte, nas palavras de Eduardo Lourenço, autor da obra que origina o gesto curatorial presente, é “uma espécie de silêncio não natural na engrenagem da Vida”[1]. Por outro lado, ou talvez do mesmo lado, existe a metáfora, esse instrumento, essa pá, essa maneira de escavar o mundo. Essa ferramenta pérfida que nos convence sermos donos e senhores do ardil da eternização. Um prolongamento, um esvair da crítica. Uma ação de continuidade, na consciência fatal do seu término. A soma de ecos de que o próprio Eduardo Lourenço nos fala na referida obra. A arte como eco da vida (ou vice-versa), a metáfora como eco da arte (ou vice-versa).
No espaço expositivo, o trânsito é constante. O corpo visita e é visitado. Em alguns momentos é substituído, noutros é preenchido. Chega a ser convocado a preencher. Se o artista é esse operador “criador de novidade e imitador da natureza”[2], então é aqui que a equação se cumpre. Neste espaço, saímos sem perceber de que somos feitos. Pode ser de bronze, como nos trabalhos de Fernão Cruz, ou pode ser de gestos, como na Porta morta de Nuno Sousa Vieira onde, o que resta, é esse fenómeno da ação que a abre. Um corpo é múltiplo. Como aqui se entende, não há lugar à idealização. Afinal, “o que é o ideal senão a edulcoração, a simplificação, a síntese abstrata, a negação da carne das coisas?”[3].
Há um convite latente ao espectador de preencher as incompletudes dos trabalhos exibidos. No primeiro piso, Dentro de mim, de Helena Almeida, absorve, através do espelho que irrompe no corpo da artista, o que quer que habite as suas redondezas. Campéstico, de Álvaro Lapa, apresenta-se de superfície pictórica incompleta, permitindo a interrupção da obra pela parede do espaço expositivo, ou, no limite, por uma qualquer outra coisa. A escultura de José Pedro Croft, com uma plasticidade que nos leva a crer estarmos a contemplar uma sua pintura tridimensionalizada e pousada no chão, deixa, também ela, patente a ideia de vazio e, não de somenos importância, de inacabamento. Sabemos a importância do olhar do visitante para a transitoriedade temporal da obra e para a legitimidade da sua permanência, no entanto, neste caso, a necessidade parece ser maior. Talvez um convite cínico: o preenchimento é impossível, a ideia de incompletude ocupará para sempre uma obra, quer isso se manifeste formalmente, ou não. Ainda neste piso, The mirror suitcase man, de Rui Calçada Bastos, atira-nos para fora de campo e, simultaneamente, concorre com esse exterior pelo foco de atenção do espectador. Devolve-o ao mundo para, depois, o tentar recuperar. Uma ideia ambígua, em relação aos outros trabalhos que, nesta exposição, lhe são próximos.
A relação de visitante ocasional pode também acontecer entre as próprias obras de arte, apesar da evidente dependência de alguém que dê curso a essas relações. Sobre isto, é de destacar a relação entre três obras presentes no segundo piso que, entre elas, mostram sinais de uma contaminação vincada e, simultânea e aparentemente, fortuita. Antropagias II (1/3) de Dayana Lucas, S/ título, de António Bolota e Variações, de Jorge Martins, são peças que habitam o mesmo campo imagético referencial: as formas que as ocupam vivem num espaço comum que une estes três trabalhos. Fica, assim, uma certa ideia de contemplação de uma paisagem comum através de prismas que nos transportam entre diferentes plasticidades.
A ideia de corpo ganha forma de diferentes modos. As pinturas de Eugénia Mussa transmitem, de modo literal, a estranha presença de um visitante ocasional. Susanne S. D. Themlitz apresenta uma noção amorfa do corpo, como é habitual no seu trabalho, na obra The infinity of the Island minus 3 times. Também Rui Chafes se aproxima dessa ideia, com uma escultura espectral que nos divide entre uma presença corpórea abstrata total ou uma parte do corpo que, aqui, se autonomiza, numa ideia próxima ao que faz Eva Tothschild, em N.G.O. Luís Nobre representa-o anatómica e precariamente, enquanto que Fernão Cruz reforça a ideia de desfragmentação presente na exposição.
Headbanger e S/ título são vestígios da própria compleição do artista, dimensionados à escala do passado: Fernão Cruz, na conceção dos elementos corporais que servem a estas obras, utilizou medidas corporais da sua fase pueril. Nuno Sousa Vieira, com Portas mortas explora para além do corpo: os seus hábitos, os seus gestos automatizados, que falhariam redondamente num hipotético acesso a algum lado, através desta porta aparentemente disfuncionalizada. Por último, Dropping/falling, de Gabriela Albergaria, deixa-nos perante a inelutável finitude do corpo do espectador, em contraste com a duração de outros materiais, de outros corpos. A opção de eternizar uma folha de anthurium wedlingeri em bronze serve de irónica metáfora a tudo isto: no fim, sobrará a arte. E por mais que esta se afaste do seu autor, ao perdurar, numa hipotética morte coletiva da humanidade, será sempre prova de que esta existiu. Inextricabilidade, diria, mesmo nos métodos de produção artística onde se escamoteia o autoral (cf. Fernando Calhau[4]).
Visitante Ocasional, com curadoria de José Maçãs de Carvalho, pode ser visitada até 18 de fevereiro, no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra.
[1] Lourenço, Eduardo. (2023). O Espelho Imaginário. Lisboa: Gradiva. p. 12.
[2] Eco, Umberto. (2004). História da Beleza. Oeiras: Difel. p. 178.
[3] Didi-Huberman, George. (2017). Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro. p. 15.
[4] “Calhau, que mantinha uma relação de desconfiança com a marca da mão, com o sinal expressivo da individualidade do artista (…) procedia a contrario, disfarçando a manualidade através de uma enorme sofisticação na manufatura” em Sardo, Delfim. (2017). O Exercício Experimental da Liberdade. Lisboa: Orfeu Negro. p. 72.