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– “C’est quoi cette danse?” ­­– Cette danse.

Um denominador comum a todas as formas de expressão artística é a abertura de ecrãs e a priorização da virtualidade em face do que comummente se chama a realidade ou a normalidade. Contudo, ao invés de cindir um plano de outro, o que a arte faz é precisamente anular a disjunção entre o virtual e o real. Assim, um plano artístico é responsável tanto por um corte, quanto por um velamento, quanto ainda por um desvelamento. Cobre-se um plano consensual para desvendar quadros compreensivos de direcções múltiplas, assumindo-se o múltiplo como uma plataforma vocacionada de entendimento. Nesse sentido, a cisão estruturante do espaço em cena dramática é, de uma forma ou de outra, levada a cabo sempre que a arte acontece e é exposta. O trabalho de Diogo Bolota não é excepção, compreendendo a sua última exposição, C’est quoi cette danse?, na Dialogue Gallery, um conjunto de cinco quadros cujos títulos são passos de ballet clássico. À designação que a técnica conhece, como elemento de aprendizagem e palavra de ordem que o bailarino incorpora, abre-se o desígnio interrogativo sobre o todo: se os passos são, com nominativa certeza, o rond de jambe, o arabesque, en dehors, grand battement, que dança é esta? O mesmo será dizer: onde está o movimento? Por que nome chamá-lo e como habitá-lo no avesso de uma pergunta que o ambigua e que, porventura justamente nesse gesto de proposta criativa, o torna irresolúvel? Mais: como tornar esse movimento meu? Como apropriar-me dessa forma? Tudo questões com as quais o espectador lida, mais não seja inconscientemente, na experiência estética de testemunho artístico. A juntar aos quadros, a acompanhar a folha de sala, poemas da autoria de Diogo Bolota, evocam mais imagens, ao jeito de correspondência extraviada com a própria criação pictórica principal. Um teatro contra o protagonismo, um coro de vozes contra o canto a solo. E onde encontrar a autoria? Onde supor uma autoridade e um passado devidamente responsáveis das cenas que no presente se impõem?

A(s) parte(s) corresponde(m) à norma classificativa, ao esquema fixo das palavras, sendo o todo da dança o que foge à compreensão, tratando-se igualmente daquilo que se presta a uma inquirição potencialmente capacitante e instrutiva. É precisamente a duas velocidades essenciais que se desenha a pauta de Diogo Bolota nesta exposição: por um lado, levantam-se em frente dos nossos olhos formas orgânicas, reminescentes de tubérculos, orgãos genitais, intestinos, mas também produtos processados, tais como salsichas, bolos de pastelaria requintada, objectos de uso quotidiano, como cabides, bandeiras de sinalização, cancelas semelhantes às que encontramos à entrada e à saída de parques de estacionamento. Não se trata, no entanto, de colocar em confronto elementos da ordem do natural e do cultural, opondo-os, consequentemente não sendo justo antever neste conjunto de quadros a conciliação surpreendente de mundos diversos. Dir-se-ia que C’est quoi cette danse? se ocupa do material apócrifo – aquém ou além de pares dialécticos, como os sonhos e a memória revisitada -, material certamente relativo a acontecimentos outros (mais do que a acontecimento passados), em todo o caso coincidente com projecções presentes, num permanente devir actualizante; projecções mediadas por formas sem aparente relação, mas cujos contornos o espectador tratará de unir, segundo pontos de contacto basilares de uma semelhança mínima a que a imagem, como apelo estético de pensamento, nos força a investir formalmente.

Há, com efeito, uma partilha ética, concentrada numa função de testemunho que o artista atribui ao espectador, partilha essa responsável pelo destaque da reificação em que o mundo normativo funciona. Se a arte corresponde, em termos semânticos ou ontológicos, aos seus efeitos, não é que ela esteja submetida a um meio e a um regulamento universal que a condicione. É, pelo contrário, o papel de dar a ver a regra e as estruturas fundamentais do nosso imaginário quotidiano e simbólico, que a isolam num plano autónomo e profundamente actuante. Tudo isto se torna bem expresso no modo como Bolota escolhe cindir os quadros entre uma disposição cénica e uma exposição arcaica – como numa vitrine em laboratório -, remissiva a uma anterioridade que à peça de arte atribui o estatuto de invisibilidade, como um segredo, partilhada. Ora, não nos esqueçamos que o segredo para ser segredo é preciso que seja desvendado. Se oculto permanecesse ficaria retido na câmara cega de um universo paralelo, como que atraído para o interior (sem exterior) de um buraco negro. Assim, o que fica guardado só é oculto se por uma brecha a matéria em fuga for por alguém vista, apreendida e apropriada.

Numa entrevista orientada por Carolina Trigueiros, para a Umbigo Magazine, o artista refere: “O trabalho é o silêncio da criança que espera a sua vez para que a sua voz se ouça, como quando mete o dedo no ar na sala de aulas com dúvidas.” Assim, a mediar a voz do artista e a recepção do espectador, encontra-se um contrato tácito de autorização, consistindo, seguindo o recurso metafórico do artista, na autorização do professor, isto é, por parte da instância de poder. A criança ou o artista, aqueles que habitam um silêncio prenhe do desejo de dizer, fazendo da fala experimento contra a incomunicabilidade, fazendo do nome do passo de dança o enigma sempre reincidente da dança. O silêncio, portanto, a que uma arbitragem (ou ensino) só pode responder pela repetição de movimentos, pela confiança obstinada numa regra e numa palavra, cujos usos são responsáveis por uma distorção progressiva, potencial. No campo – de futebol ou da batalha, da vitrine de uma pâtisserie ou de um talho -, é o artista o grande construtor de cenas, o habitante diligente que não admite a distância ocular e o investimento numa acção (desportiva, bélica ou de flânerie) senão por um trabalho tão descritivo quanto o é de associação imagética livre. É confundindo exatamente a instância interruptiva da criação artística e a instância, já não de conversão, mas de conversação com o espectador, que o artista vai falar.

C’est quoi cette danse? está patente na Dialogue Gallery até 2 de março de 2024.

 

A autora não escreve ao abrigo do A90.

Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.

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