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Ron Mueck, referência do hiperrealismo, chega a Milão

Após Siamo Foresta, exposição patrocinada pela Fondation Cartier pour l’art contemporain, que trouxe à Triennale um conjunto exemplar de obras indígenas vindas da bacia amazónica, bem como obras de autores inspirados nas estéticas e nas políticas que envolvem a floresta mais famosa do mundo, a instituição francesa voltou a Milão oferecendo, desta vez, a primeira exposição em Itália dedicada ao artista australiano Ron Mueck.

Nascido em Melbourne em 1958, Ron Mueck é, provavelmente, o escultor hiperrealista contemporâneo mais conhecido do mundo, cujo trabalho sobre a anatomia humana e as suas expressões ultrapassou de forma preeminente os trabalhos inesquecíveis dos artistas americanos John De Andrea, Duane Hanson, Chuck Close e Richard Estes, transformados em ícones deste género artístico com a sua participação na memorável documenta 5, curada por Harald Szeemann, em 1972, em Kassel.

O que mais impressiona, de forma curiosa – sobretudo hoje, época da exasperação tecnológica, na qual as imagens se reduziram à dimensão do ecrã do telemóvel –, é o confronto entre a dimensão humana e a desmedida proporção das obras de Mueck: sistematicamente fora da régua, acima ou abaixo em relação à escala da realidade, os detalhes apavorantes graças ao requinte da execução, as figuras criadas pelo artista afetam profundamente a nossa perceção, aliás, abrem as portas a uma condição de alteridade até inquietante.

Sob a curadoria de Hervé Chandès, diretor internacional da Fondation Cartier, somos desde logo acolhidos por uma das obras cruciais da carreira de Mueck: a imensa mulher deitada na sua cama (In Bed, 2005), meditabunda e desmaquilhada, os joelhos erguidos debaixo do cobertor branco, a pensarem quê, ou em quem? E lá voa a nossa imaginação, observando de perto a textura da pele, as rugas das mãos, os olhos lúcidos. O processo de Ron Mueck para a criação destas figuras, que vão para além da perfeição técnica, é revelado em dois vídeos, realizados pela Fondation Cartier ao longo de dez anos e expostos como parte da mostra: Still Life: Ron Mueck at Work (2013) e Three Dogs, a Pig and a Crow (2023), ambos com assinatura do artista Gautier Deblonde.

Mas apesar do efeito do jogo da dimensionalidade ainda funcionar, quer agigantando quer miniaturizando, o que não convenceu nestas salas deveu-se à ausência de uma qualidade mágica na expografia, que ampliasse a perceção surreal que subjaz às obras de Mueck, de modo a torná-las ainda mais sedutoras, verdadeiros portais de acesso a outras dimensões. Feita a devida exceção ao espaço que hospeda Mass, grande instalação de crânios desmesurados e amontoados realizada em 2017, lembrança moderna de uma vanitas de tamanho ambiental, o diálogo entre as demais obras em cena está ausente: a pequena mulher nua carregando nos braços um molho de galhos (Woman With Sticks, 2009-2010) divide o espaço com três grandes cães completamente negros (En garde, 2023), que sinalizam também uma mudança de passo na prática do artista, e ainda outras duas miniaturas: a luta entre uns homens e um porco amarrado, prestes a ser degolado (This little pig, 2023) e o recém-nascido (Baby, 2000) pendurado no muro, quase a lembrar a figura do Cristo crucificado.

Escassa para ser considerada uma retrospetiva e, contemporaneamente, repleta de obras-exemplo – embora a poesia dos trabalhos mais singelos seja inequívoca –, carece à exposição uma chave mestra para tornar tudo mais dinâmico, inclusivamente porque, para quem já teve ocasião de conhecer o percurso de Ron Mueck, cerca de metade das obras expostas em Milão já tinham feito parte do soberbo projeto que a Cartier dedicou ao artista australiano nos espaços da Fundação no Boulevard Raspail em Paris, dez anos atrás.

A primeira exposição do artista australiano numa instituição italiana acontece na Triennale, até ao dia 10 de março, patrocinada pela Fondation Cartier.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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