Stringing the disconnection na Galeria das Salgadeiras
Stringing the disconnection encerra uma dupla celebração: é a nova exposição de Rui Soares Costa e assinala a inauguração do novo espaço das Salgadeiras, no aniversário dos seus vinte anos de existência. Como todo o compasso – enquanto ritual de continuação – que as celebrações encerram, esta exposição não é exceção e apresenta esse sentido duplo da festividade que, se se impõe é porque a vida resiste de uma forma ou de outra, constituindo igualmente um momento que convencionalmente apela a balanços e reflexões sobre o estado das coisas, isto é, dsobre a forma de resistência que para si a mesma vida vai tomando.
A contrariedade e tensão que o título semanticamente encerra sugere que se junte o que precisamente se dispersa, ambiguando a frase entre o estado provisório e a condição intrínseca da matéria combinável e a outra essencialmente inaproximável. Não é possível, pois, determinar se o que é suposto aproximar se encontra apenas provisoriamente distante, se se trata de cumprir a tarefa mítica de juntar o que intrinsecamente só pode estar separado. Ora, é precisamente nesse intervalo discursivo – entre o que se supõe de uma forma, dispondo-se, todavia, a assumir novas formas – que a exposição se situa, como anúncio de uma situação já instalada e como previsão de um cenário, em parte, inconcebível. Daí tratar-se de um trabalho iminentemente imaginativo. A exposição é, com efeito, situada, não tanto como enunciado dilemático, como impasse, mas sobretudo como statement mobilizador, colocando em confronto o valor da denúncia, do apelo, da arte como meio de ação elucidatória, ético-política e o valor da matéria de um mundo cuja configuração aparente e física continuará a mudar concretamente a uma velocidade galopante, anunciando-se uma nova era, cujas implicações não permitem grandes optimismos.
São as alterações climáticas o grande tópico do artista, cuja exposição se divide em quatro momentos: uma série de fotografias realizadas durante a residência artística no Mehrangarh Fort and Museum, em Jodhpur na Índia, em inícios de 2021; um novo conjunto da série Paper series, no qual o artista se serve de folhas de seda para produzir desenhos sobre madeira queimada; um conjunto de peças da série Air series, na qual fios de nylon unem pontos imaginários – assim permanecendo, por mais que os possamos tocar – a partir da estrutura de cantoneiras de aço oxidadas nas águas do Tejo e, por último, o tronco apodrecido de uma árvore suspenso a 2,5 metros de altura, a marcar o nível médio das águas do mar estimado para 2100, segundo o National Oceanic and Atmospheric Administration. A precisão geométrica sugerida pelos fios de nylon, a formarem uma rede complexa, é desvirtuada pela transparência dos fios, cuja matéria ganha projeção com a incidência de luz e a consequente formação de sombras na parede branca. Assim, a precisão dos fios, na disposição intocável da obra de arte em galeria, é desfeita para a substância onírica da sombra. A exposição dinamiza-se, em parte, tanto pela distribuição das peças no espaço da galeria, quanto pela contaminação do exterior sobre o interior. A oxidação a que as peças são expostas, sem resultado certo, revela o material artístico como absolutamente dependente de uma presença do artista no mundo, em contacto com os recurso naturais, de que não pode despender, na medida em que o próprio tempo que habita – criando – é palco de influências e cruzamentos por que se constitui enquanto sujeito observador e participante.
Trata-se, deste modo, de uma exposição que, seguindo a ordem engajada de uma intenção crítica e política, não se esgota na transmissão de uma mensagem noticiosa, significando-se antes pela abertura de canais de difusão e transporte, apontando para o carácter físico e material da comunicação e das ideias que uma combinação estética, com sentido, como uma obra de arte é essencialmente, suscita. O desenho, o traçado de um gesto manual (investimento do corpo todo), como forma de resistir ao vazio e ao automatismo das máquinas, constitui a tabula rasa a partir da qual o trabalho do artista pretende ser uma mensagem singular – e daí audível – de entre muitas outras acerca do mesmo problema. Como retratos vazios, móveis despejados, maquetes de espaços a habitar, as estruturas em aço ressoam como lugares intersectados, não obstante por preencher. Como um mundo impiedosamente cindido, sulcado e ocupado, e que apela agora a uma forma justa de habitação. Um outro título possível para a exposição de Rui Soares Costa seria pedido emprestado a Ruy Belo: O Problema da Habitação. Esta exposição e o trabalho do artista poderiam bem ser subsumidos à técnica e ao ato do desenho. O próprio artista classifica o processo de sobrepor folhas de seda enquanto desenho. E é desenho na medida em que há uma tentativa de retornar a uma essência operária, fundamentalmente tátil, a partir da qual o ser humano possa (re)reconstituir uma relação com o mundo. Henri Focillon no seu Elogio das Mãos aponta precisamente para a dimensão criadora do uso das mãos – uso distintivo do ser humano relativamente aos animais que vivem num mundo sem peso e volume -, em parte viabilizada pela operação de redimensionamento da natureza que, por sua vez, as mãos possibilitam: “A mão colocou perante os olhos a evidência de um número variável, aumentado ou diminuído consoante o dobrar dos dedos. Durante muito tempo, a arte de contar não conheceu outra fórmula.”[1] Há um balançar significativo entre o trabalho manual da interseção – tecelagem respirada ou interrompida, tecido ritmado ou desfeito – dos fios de nylon e a medição da altura carregada de sentido: querendo dizer muito exatamente o aumento do nível médio das águas do mar, sintoma de uma ocupação indevida do planeta por parte do ser humano. Há, enfim, uma humildade latente no modo como o artista aborda temáticas que progressivamente inundam os ecrãs e as plataformas de informação mediáticas, a respeito de um problema que toca a todos, apontando precisamente para a desigualdade opressora em que o mundo é sistematizado e tornado ilusoriamente funcional.
Da fotografia desfocada, ao espaço entrecortado de vazio(s) aberto pelas cantoneiras, à sobreposição de transparências, não há nenhuma mensagem forçosamente inscrita senão aquela que obriga a uma rescrita, ao assumir da repetição, da nossa qualidade de rapsodos de uma natureza a que pertencemos primeiro com as mãos, depois com o corpo todo. Um passado ecoa formidavelmente contra a ressonância de um futuro imaginado. O presente escapa-nos e há-que contrair, como uma doença e uma paixão, o rasto melodioso dessa fuga. A arte pode operar esse redimensionar de uma presença tátil de seres que não podem senão contar – e assim enfeitiçar – um real ao qual só através de um engenho agudizado pela prática poderão chamar – e nunca confortavelmente – casa.
Stringing the disconnection está patente na Galeria das Salgadeiras até 24 de fevereiro.
[1] Focillon, Henri (2016). A Vida das Formas – seguido de Elogio das Mãos (trad.Ruy Oliveira). Lisboa: Edições 70, p. 103.