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A matéria em arquivo. Por Kapwani Kiwanga, no Museu de Serralves

Embora com um título particularmente descritivo, Onde o sal e a água se encontram e as árvores sinuosas filtram o sol, a exposição de Kapwani Kiwanga (Canadá, 1978), no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, abre os campos interpretativo, recetivo e experiencial. A artista, uma das mais relevantes da sua geração, parte de uma investigação teórica e de uma abordagem da atualidade, mas a sua obra estende-se para além de circunscrições conceptuais, convocando um espectador livre e ativo.

Nesta exposição, a sua primeira individual em Portugal, Kiwanga questiona e reflete sobre “como contamos coisas, como falamos, como interagimos com o mundo através das palavras”. No entanto, o discurso e a linguagem surgem e são expressos sob a forma de imagens e objetos, trabalhando, deste modo, a comunicação em toda a sua extensão. A obra da artista é, com efeito, comunicativa e também composta por múltiplas layers e dimensões.

Como o diretor do museu de Serralves Phillipe Vergne esclarece, a artista explora várias narrativas, sobretudo relativas à modernidade, nomeadamente a questão da forma e da matéria. Kiwanga questiona de que modo o material e a matéria podem constituir arquivos, sendo este o eixo em torno do qual a exposição emerge e se constrói. Sublinho a importância do arquivo nos dias de hoje, tanto como continuidade da corrente da pós-produção, na qual se sustenta uma importante área da criação artística contemporânea, como na valorização da memória e no reconhecimento de que somos, em parte, resultado daquilo que nos precede, tanto como indivíduos, como em conjunto, enquanto sociedade.

Kiwanga tem formação em antropologia e nas ciências sociais, e experiência no trabalho de arquivo. Daí provêm a sua tendência e a sua capacidade para abordar narrativas históricas em relação e em diálogo com realidades contemporâneas. Na transição para o campo artístico, a artista operou a imagem, mas cedo a abandonou para trabalhar com o corpo, sendo grande parte da sua obra performativa. Durante anos, ofereceu resistência à utilização da matéria, mas, como nos conta, foi progressivamente invadida pela vontade de a explorar, sobretudo como meio de escapar às técnicas tradicionais do processo de arquivo, tais como a representação. O resultado é um trabalho valioso, tanto a nível teórico quanto formal e estético.

Na sala central do museu, a exposição divide-se em dois momentos, no primeiro dos quais os materiais são alusivos a Portugal. A primeira matéria que encontramos atesta à preferência da artista por fibras naturais, neste caso, a corda. Em grande número, inúmeras tranças e nós de corda caem do teto e distribuem-se no espaço compondo um jogo físico e percetivo. Remetem para a história e a cultura portuguesas, mais especificamente a atividade marítima e fluvial, a construção naval e a cordoaria. Outras três peças, em azulejo, convocam mais influências sociais e económicas nacionais. Deste último material, a artista destaca o provir da terra, elemento este que considera ser a base de tudo, inclusivamente de nós mesmos.

Após este primeiro núcleo, a exposição ganha uma amplitude internacional e, sob a forma de uma instalação de grande escala, intitulada Threshold, Kiwanga apresenta-nos o mundo do ponto de vista das comunidades africanas do Congo. Como explica, as diferentes culturas e sociedades veem o mundo, situam-se e relacionam-se com ele de forma própria. Simultaneamente, sob o que nos rodeia, cada um de nós tem um ponto de vista individual, ainda que mais ou menos determinado por influências externas. Ademais, a forma como nos posicionamos e, consequentemente, percecionamos o mundo não é fixa – pelo contrário, encontra-se em recorrente, se não mesmo em contínua alteração. A própria ação de percorrer este espaço da galeria do museu em torno da instalação demonstra que, dependendo do local e da perspetiva adotados, um mesmo objeto é percecionado, entendido e experienciado de forma distinta. A própria obra parece ganhar novas configurações. No cerne desta experiência estética e da problemática teórica lhe deu origem, está, justamente, o posicionamento, tanto daquele que observa como do observado.

Sobre a peça enquanto objeto artístico, embora apresentada como imagem do mundo, distancia-se do mapa-mundi. Esta divergência é sobretudo acentuada pela composição geométrica e abstrata da obra, constituída por linhas, esferas de madeira e tubos de aço laminado. Assinale-se que estes últimos aludem aos quatro eixos de ferro que sustentam a Terra, na cosmogonia bacongo, de Angola. Ademais, o roxo, que em painéis de madeira sob a forma de moldura envolve toda a instalação, retrata a noite, e embora seja uma cor escura e profunda, distingue-se do preto, habitualmente utilizado para representar toda a escuridão. Em contraste, encontra-se o branco das pequenas pedras que formam a superfície da instalação, a qual é, por sua vez, atravessada por linhas ora negras, ora brancas e em espelho.

Também se destaca a relação com o exterior. Nesta sala, onde o arquiteto Álvaro Siza Vieira desenhou uma ampla janela, a luz entra e embate sobre a obra de Kiwanga de um modo inebriante. Consoante a hora do dia, também este efeito se altera, cobrindo e descobrindo a obra, percorrendo-a ao longo de toda a sua extensão. Kiwanga procurou, precisamente, desenvolver uma instalação cativante e contemplativa, convidativa a parar, pensar e refletir criticamente. Consequentemente, tornou-se um espaço condutivo de uma profunda receção estética.

Por fim, refiram-se alguns momentos do percurso artístico de Kiwanga, tais como o prémio Marcel Duchamp de 2020, a participação na bienal de Veneza no ano passado e o retorno na próxima edição desta última, em representação do Canadá. Tal como Philippe Vergne considera, é um privilégio testemunhar e experienciar de perto a criação e a produção artísticas de Kiwanga.

Do mesmo modo que o sal e a água se encontram e unem, somos intercetados, contaminados e transportados pela obra da artista. Contudo, neste caso, o sol não é filtrado. Pelo contrário: a artista ilumina, esclarece e discute o estado do mundo e o estado da arte e, a partir daqui, em certa medida, a própria condição humana.

Onde o sal e a água se encontram e as árvores sinuosas filtram o sol de Kapwani Kiwanga está patente no Museu de Serralves até 2 de junho de 2024.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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