Top

Norte Silvestre e Agreste na Galeria Municipal do Porto

Interrogando-se sobre a identidade do território que abrange a Galiza e o Norte de Portugal, a exposição Norte Silvestre e Agreste, com curadoria de Filipa Ramos e Juan Luis Toboso, patente na Galeria Municipal do Porto, apresenta-nos obras de artistas e coletivos que refletem sobre temas como a paisagem, mitologia, histórias tradicionais, conexões entre estes lugares transfronteiriços, e sobre o modo como esses universos influenciam as suas práticas artísticas. Alternando diferentes médiuns desde escultura, instalação, vídeo, ou desenho, a mostra revela-nos um novo imaginário que, baseado em contos, etnografias especulativas e falsas antropologias, questiona o território e constrói novas ficções. Através do mapeamento do Noroeste Ibérico, como espaço de genuinidade criativa, referências específicas e imaginários idiossincráticos, Norte Silvestre e Agreste não pretende, segundo os curadores, celebrar nostalgicamente uma história antiga de pormenores pitorescos, nem desenhar uma cápsula do tempo
de ruralidade ancestral, mas identificar uma identidade em permanente devir, que sabe onde tem as suas raízes.

A preocupação com o território e inquietudes perante a preservação e subsistência da natureza, são-nos reveladas na instalação lúdica Habitar a Floresta (2022) de Daniel Moreira e Rita Castro Neves, dupla artística cuja prática, influenciada pelo pensamento animista, centra-se na representação da paisagem, traçando no território caminhos, registando e recolhendo os seus elementos. Conferindo particular atenção ao desenho expositivo, a instalação assume-se enquanto projeto de ativação, um espaço florestal para habitarcaminharcavalgarvoarandar devagar, conversar e observar[1]. Atravessamos as cortinas de tecido, com ilustrações de vegetação de um lado e de animais do outro, que, servindo de cenário, anunciam e escondem a floresta imaginada pelos artistas. Integramos a clareira de cores vibrantes com arbustos onde nos podemos esconder e animais de balouço, pau e rodinhas – brinquedos tradicionais em madeira ­­– que, numa aliança entre memória, cultura e tradição, nos ajudam a atravessar a floresta evitando obstáculos. Um mundo em que animais, plantas e humanos convivem em harmonia, como se fossem um só, numa obra que evoca a memória de um lugar cada vez mais distante.

Transpondo para a GMP o universo marítimo e uma nova mitologia por si recriada, Diego Vites apresenta-nos, num cruzamento entre a investigação etnográfica e a arte contemporânea, a instalação Cabria para Porto (2023). Num exercício de experimentação e análise da arquitetura vernacular das Cabrias, estruturas para a secagem do congro, utilizadas na Costa da Morte (Galiza), Vites reinterpreta estes dispositivos funcionais e de uso tradicional, associados a um processo artesanal de trabalho, trazendo-os para o campo da arte contemporânea e atribuindo-lhes uma nova sintaxe. Representativas de uma forma de vida associada à cultura marítima e ao convívio do povo galego com uma natureza selvagem e um clima hostil, as Cabrias amplamente documentadas desde a Idade Média subsistem nos dias de hoje como símbolos de uma cultura que resiste perante uma economia global. Emulando as duas derradeiras Cabrias de Múxia a operar na costa galega e que se impõem pela sua estética chamativa, com os congros escalados e pendurados para que o nordés e o sol os sequem, Vites recria o sistema de conservação artesanal do congro, apresentando na galeria uma estrutura robusta e de vários metros de altura, construída em madeira a partir de troncos que, dispostos vertical e horizontalmente, configuram um andaime de grande escala.

Cabria para Porto assume-se enquanto dispositivo expositivo e de encontros, através da qual Vites expõe elementos de criação própria – esculturas e pinturas de comunidades piscatórias – que, em diálogo com obras de outros artistas, adquirem, dentro da instalação, novas leituras e significados. Num trabalho colaborativo de relação entre obras de diferentes autores, entramos e percorremos a Cabria, observando representações de congros em diversos materiais, com destaque para a escultura em madeira Congrio, da autoria do pai do artista, Santiago Vites e para a serie Debuxos congrio realizados por Geles, sua mãe. Entre signos associados à iconografia marítima – cordas, redes de pesca, conchas e caixas de esferovite de companhias navais onde se preserva o peixe – Diego Vites acrescenta, num processo de observação e recolha, elementos trazidos pelo mar: desde o selim de uma bicicleta, a roupas e sapatos que dão à costa. A estes objetos acresce-se, numa alusão ao Caminho de Santiago, Conxunto escultórico santos, de Paulino de Moraña e cinco obras do escultor Cândido Caneiro, que, num exercício artístico e de sustentabilidade, recorrendo ao uso de materiais reciclados que envelheceram com o tempo, testemunham uma conexão profunda com a terra e a essência rural. Culminando a instalação na sua parte superior, destacamos a simplicidade dos papéis coloridos do Colectivo NEG Internacional que, como bandeirolas, delimitam a cabria revelando-nos imagens aleatórias provenientes de arquivos, desenhos e anotações que perfeitamente integradas de maneira formal na estrutura suscitam, em diálogo com as restantes obras e autores, uma reflexão e debate sobre identidade, antropologia e tradições artesanais galegas.

Traços de identidade territorial e social do Noroeste Ibérico são de igual modo explorados por Salvador Cidrás e Vicente Blanco. Entre a arte, o artesanato e o design, Cidrás explora os limites da cerâmica e do têxtil desde uma perspetiva escultórica, incorporando técnicas tradicionais da Galiza, ao mesmo tempo que atualiza o seu território e história. No caso das peças cerâmica, os vasos em grés concebidos manualmente inspiram-se em soluções construtivas improvisadas da Galiza rural. Destacando-se pelo seu tamanho, complexidade, estranheza e organicidade das formas, resultantes da tensão dos materiais, as peças revelam superfícies brilhantes, esmaltadas, pigmentadas e com texturas diversas, às quais Cidrás acrescenta o mosaico. A experimentação do artista com diferentes texturas e a crueza dos materiais é-nos revelada nos trabalhos têxteis, de gesso pigmentado sobre urdidura, peças feitas com fios entrelaçados e tinta que aprofundam narrativas de formas e cores. Aproveitado a base flexível da trama, Cidrás desenvolve relações espaciais entre a textura do tecido e o plano das paredes da galeria, em três criações que suspensas, revelam-se como pinturas translúcidas. Questionando noções de masculinidade, liberdade e explorando a construção da sua própria identidade no contexto rural da Galiza que invisibiliza o seu desejo e existência[2], os cinco desenhos de Vicente Blanco transmitem-nos sensações tensão e vulnerabilidade em retratos de sonhos e medos que se inspiram nas zonas rurais do norte de Espanha, enquanto lugares de força e resistência, de agreste e silvestre. A simbiose entre natureza e animais é-nos igualmente revelada no grandioso mural Labaredas Silvestre (2023) de Mariana Barrote, narrativa ficcional composta por figuras míticas que emergem do fogo, inspiradas pelos cavalos garranos de Serra de Arga. Em tinta acrílica, observamos o poder do gesto e o movimento das pinceladas nos desenhos vigorosos destes seres cujos corpos flutuam na parede. Como uma homenagem às mulheres, as que ciciam mundos de excesso debaixo de penedos e fontes[3], as criaturas híbridas de corpos femininos e equídeos que se misturam criam uma relação entre o feminino e o animal que reencontramos nas obras de Alejandra Pombo Su. Percorrendo visões e imaginários oníricos de pessoas, animais e lugares através de um universo sensorial, animal, feminino e indizível, observamos os desenhos[4] coloridos e naïfs da artista que em diálogo com as suas esculturas improvisadas de figuras antropomórficas, em exibição na Cabria, estabelecem uma simbiose intensa entre natureza, animais e pessoas. A relação entre o animal e o feminino, o mitológico e o fantástico é-nos igualmente revelada na primeira obra da exposição, o retrato fotográfico Maruja Mallo com manto de algas (1945), trabalho performativa da artista espanhola que vestida de algas apresenta um corpo em metamorfose, transformando-se num ser híbrido, oceânico, uma natureza-viva.

No segundo piso dedicada à exposição, visionamos a curta metragem Noite sem distância (2015) de Lois Patiño, ficção experimental que explora a história do contrabando na fronteira entre a Galiza e o Norte de Portugal. Entre silêncios e pausas, as imagens em negativo colorido oferecem-nos uma visão noturna que transforma os corpos em fantasmas e conferem uma aura espectral à paisagem. A observação atenta da natureza, dos seus fenómenos, a importância da paisagem e suas alterações estão presentes no dispositivo escultórico El Pensadero (2019-2022) de Adataberna, arquivo pessoal e de memórias da artista cujos objetos que o compõem remetem para a representação do tempo e ideia de finitude. Em destaque, no último piso da exposição, concluímos mencionado a instalação FlorFantasma- Díptico (2022) de Mariana Caló e Francisco Queimadela, dupla projeção de slides sobre painéis de seda tingida, que, quais cortinas translúcidas, revelam seres flutuantes de sombra e luz. O interesse da dupla em pensar a imagem-luz e a cor em translucência, e em verem projetadas formas vegetais levitantes, espíritos fluídos e orgânicos, concretiza-se na obra. À medida que percorremos a instalação, surge entre os nossos passos a imagem em movimento de uma flor-rosto, numa exposição que, em constante sinergia com os elementos naturais, nos revela diferentes vozes e sotaques que falam de identidade enquanto lugar.

Norte Silvestre e Agreste está patente na Galeria Municipal do Porto até 10 de março de 2024.

 

[1] Norte Silvestre e Agreste, folha de sala da exposição.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] A série integra uma coleção maior de dezenas de desenhos que serão apresentados no decorrer da exposição em três momentos distintos.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)