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Entre a noite e a matemática: Thomas Braida na Monitor

Durante o dia, o que existe de mais profundo em nós hiberna no alvoroço da rotina. Em oposição, na noite, o cosmos infinito acima de nós e a escuridão que nos rodeia invocam o subconsciente. Navegar conscientemente na escuridão permite alcançar estados de transformação e inspiração, e por isso a criatividade é das manifestações mais comuns durante este período.

A primeira exposição individual de Thomas Braida em Portugal debruça-se sobre a noite, período onde surgiu a maior parte dos pensamentos que envolvem as obras em exibição. Outro aspeto importante, anunciado logo no título da mostra (Mathematiche Notturne), é a própria Matemática, como conhecimento essencial para compreender o mecanismo do mundo, mas também do nosso subconsciente, e que aqui se aproxima à pintura.

Meditar sobre objetos que nos lembrem da vida e da morte é uma prática comum, e tem sido matéria recorrente na história da arte. A pintura vanitas, que surgiu na Holanda no início do século XVI, é caracterizada pelo uso de objetos que simbolizam a transitoriedade da vida — entre eles, crânios, relógios, velas, bolhas de sabão, joias, espelhos, livros ou flores. O crânio humano é um dos elementos mais utilizados quando pensamos na pintura deste género, como Vanitas-Still Life (1668) de Maria van Oosterwyck, ou noutras que seguiram a sua intenção ao longo dos séculos.

 Thomas Braida perpetua a simbologia do crânio como memento mori em várias obras de Mathematiche Notturne. O crânio como elemento principal da pintura surge logo no início da exposição, em However he was a smart guy (2023). Nele vemos vários elementos em si inscritos, como uma coroa de louros e vários répteis, sobressaindo uma pequena figura humana que parece segurar este crânio com toda a sua força. Em The real Barbenheimer (2023), o artista pinta uma paisagem marítima que tem como principais elementos um polvo e um crânio humano. Já em Message from a stochatic parrot (2023), o crânio torna-se tridimensional, numa escultura também composta por um papagaio negro ao que o artista se refere como “stochatic parrot”, numa referência direta a uma teoria matemática. Apesar de ser ponto focal em todas estas obras, o crânio surge sempre associado a um elemento animal (os répteis, o polvo e o papagaio), propondo uma narrativa que contempla não só a efemeridade da vida, mas também a influência intrínseca do ser humano na natureza.

Os temas das obras de Thomas Braida situam-se entre as histórias pessoais e fragmentos da humanidade, que desdobram um mundo intangível e representam algo que existe ou existiu num universo ou sonho de alguém. Em dopo cena ci spariamo um alkekengi (2023), Braida pinta uma cena doméstica carregada de detalhes, na qual quanto mais olhamos, mais descobrimos. Uma garrafa de vinho, uma pinga acabada de cair, uma mão segura um alkekengi, uma caixa de madeira aberta, um espelho, uma pequena escultura, uma ave. Como denunciado pelo seu título (“depois do jantar, atiramos em nós mesmos um alkekengi”), a obra representa o final de um jantar, onde a noite é novamente tema e lugar de reflexão sobre a nossa existência.

 No contínuo sobre pensar a condição humana, Thomas Braida reinterpreta a pintura Drunkness of Noah (1515) do artista italiano Giovanni Bellini, na obra al mondo non ocorre um altro supereroe (2023). A obra de Bellini ilustra um episódio bíblico onde a embriaguez de Noé é registada como prova da fraqueza e imperfeição humana. Noé, que era visto como símbolo de referência, surge deitado no chão, despido, sem nenhuma consciência da sua condição. Ao seu redor, estão os seus filhos, dois que tentam cobrir a sua nudez, e o terceiro que ri da condição do pai. Na obra de Braida, é desconstruído o sentido da pintura original. Noé aparece na mesma posição, mas o seu corpo surge camuflado na natureza, assim como os seus filhos. O filho que antes ria, aqui não o faz, e os que tentavam cobrir a sua nudez, já não o fazem. Há uma aceitação mais ampla da condição humana, a glorificação de Noé é desconstruída e Braida afirma que “o mundo não precisa de outro super-herói” (al mondo non ocorre um altro supereroe).

Apresentando-se como um construtor de imagens, Thomas Braida parece saber navegar na escuridão com a astúcia de um gato, animal que vê, ouve e percorre a noite com leveza. O gato como símbolo da noite surge, inclusive, na pintura rissa tra gatti com finale sorpresa (2023). Nela é captado um momento de tensão entre dois gatos que se enfrentam na escuridão. Já o título da obra, “briga de gatos com final surpreendente”, sugere uma ação desconhecida para o espetador, à qual o artista teve acesso. Nesta luta, há um final surpresa inalcançável ao nosso olhar, vislumbrado apenas na nossa imaginação.

Viver em Veneza permite a Braida um constante contacto com o mar, e a sua influência nota-se pelos motivos marítimos que vão surgindo ao longo da exposição, como vemos em The real Barbenheimer (2023), ou nos brilhos que recordam os ritmos e reflexos da luz na água, como em Things I found in the Ripples of Time (2023). Já em garusoli (2023), Braida pinta uma taça cheia de caracóis-do-mar (ou búzios), um prato típico em regiões costeiras do mediterrâneo, unindo o simbólico ao quotidiano. É impossível não associar o mar ao que existe de mais profundo na consciência humana. As correntes das marés podem lembrar os ritmos que sucedem entre as águas profundas do oceano e a sua superfície, entre o subconsciente e o consciente, o sonho e a realidade.

Por outro lado, os padrões em sequências de ondas e a sua reverberação no formato das conchas lembram-nos da Matemática, um conhecimento essencial na obra de Thomas Braida, que na nossa troca de emails sobre Mathematiche Notturne me confessou “bringing mathematics closer to painting seemed to me to be a personal duty, since unlike many, studying mathematics has helped me in life”. Entre as várias referências de Braida, estão Kurt Gödel, Alexander Grothendieck, Wolfgang Pauli e Carl Jung. A importância destes dois últimos surge da Teoria da Sincronicidade, à qual Thomas propõe uma associação com a sua produção artística. Ou seja, há uma conexão entre uma pintura e a outra, mesmo se separadas pelo tempo. Existe uma espiral simbólica que se desenrola ao longo do tempo, que faz retomar temas e elementos das suas obras anteriores, ecoando assim a ideia de sincronicidade como uma conexão além da linearidade temporal.

Por fim, Thomas Braida intervém nas paredes da galeria com elementos que compõem as diversas obras que vimos, originados nos seus cadernos de desenho: crânios e conchas, gatos e polvos, pássaros e espirais. É nos cadernos onde surgem as ideias primordiais, que servem de base para a pintura. Agora, esses desenhos navegam dos cadernos para as pinturas e das pinturas para as paredes da Monitor.

 

Mathematiche Notturne de Thomas Braida está patente na Monitor até ao dia 3 de fevereiro de 2024.

 

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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