A tríade do Colosso
O espaço Brotéria abriu, desde novembro, uma proposta expositiva de nome Colosso. A exposição foi dividida em três momentos – um clarão, uma cratera, a viagem –, cada um com a sua data de estreia e visita (respetivamente de 25 de novembro a 12 de dezembro, de 16 de dezembro a 30 de dezembro, de 6 de janeiro a 20 de janeiro), com disposições diferentes, consoante o conjunto de obras exposto.
O trio de artistas Rui Serra, SantoSilva e Tomás Maia constroem, assim, uma mostra coletiva que procura uma fusão dos materiais, dos contextos, dos conceitos e, por vezes, mesmo dos autores. Há, portanto, sempre um movimento pendular entre o diálogo e a autonomia. A própria curadoria de uma só exposição que não pode ser vista como um todo, vai antes sendo vista ao longo do tempo, cria uma fratura espacial, que simultaneamente pede uma continuidade de visita e reflexão, mas também exige coesão a cada uma das partes.
Na primeira criação, um clarão, a obra Antes (2023) de Tomás Maia é constituída por um traço de terra alinhado. A seu lado, as maquetes em miniatura de Rui Serra, Para Pensar (2023) são projeções de edifícios colossais, cumprindo o mote dado por Maia. Por sua vez, SantoSilva oculta uma das salas da galeria em de maneira difusa (2023), isto é, apenas um tecido vermelho cuja luz por trás propaga uma ideia de gestação, incompletude, promessa de futuro. Por enquanto, da sua obra é-nos dado sobretudo a vela de cera de abelha queimada, pousada sobre a Gárgula (2022) de Rui Serra, a que chama do Bem e do Mal (2023). Importa salientar a absorção artística de uma obra inicial de Serra, acomodada para receber uma proposta de SantoSilva. Esta peça conjunta, embora legendada como duas individuais, exemplifica a reflexão autoral durante o próprio processo de construção expositiva. Uma última pista que nos é dada neste primeiro tempo: a obra que estará sempre presente, Blastogénese (2020) – vocábulo cuja definição é uma primeira forma embrionária, após a fragmentação do ovo –, constituída por uma base oval, de onde emerge uma cabeça.
Em uma cratera, Tomás Maia faz crescer em altura a sua linha de terra, agora já claramente uma obra contínua, sem que ainda seja possível adivinhar o que dali poderá vir. Enquanto Rui Serra vê exposto um grande número das suas obras (nove num conjunto de dezasseis), SantoSilva traz-nos a grande revelação. Dobra o seu tecido vermelho, ainda exposto, e cria um primeiro corredor de cera, tirando as sandálias (2023), que além de criar um caminho de material frágil, termina em no primeiro dia (2023), uma instalação que pode ser um altar como um túmulo. Seja como for, a sacralização do espaço, a baixa luz entre paredes pretas, num solo que racha e parte, traz as primeiras referências simbólicas com tons religiosos institucionais num espaço cultural que se define a si mesmo como uma casa de cultura jesuíta.
A terceira parte do Colosso – a viagem, agora em exposição, revela a última parte da criação de Maia, em que Antes (2023) se transforma num enorme local arqueológico, com a exposição de um decalque da imagem aumentada de um esqueleto, sem os respetivos ossos, apenas um formato dessa figura no material, destacando-se o relevo dessa construção na vertical. Este colosso vai tapar o espaço onde anteriormente estariam muitas das obras em exibição, deixando apenas ao espetador a possibilidade de espreitar, encaixando a cara a centímetros do crânio em profundidade que imita a forma de vestígios humanos, a transversal Blastogénese (2020) de Serra, a cara que emerge de um ovo como figura de consciência. Esta cabeça que já esteve à vista pintada de preto e agora se esconde pintada de branco, quase desaparece. A SantoSilva cabe a expansão do chão em cera pelo corredor, conquistando depois degraus, mantendo a figura de cera de fundo.
Mas a que temas devemos este contínuo narrativo de diversos materiais, autorias e cronologias, afinal? O que os une parecem ser as reflexões sobre antiguidade histórica, origens, criação e consciência. Vejamos.
Podemos considerar a construção progressiva de um espaço arqueológico por Tomás Maia a recuperação dos primeiros vestígios da Humanidade na Pré-História. Aqui não há espaço para a escrita, para o conceito, para a divagação ou para o etéreo. Da terra vai-se formando a figura essencial do Antropoceno: o corpo humano. A sua posição espacial primeiro insignificante, passível de ser pisada, um traço no chão, depois um pequeno monte ainda irrisório vira obstáculo ao que seria, à partida, a continuação da exposição, num espaço já de si tão pequeno que não se pode dar ao luxo de ser cortado a metade. Mas é.
Do outro lado do corpo espreita esta cabeça, criação de Rui Serra que brota como consciência, que nos interroga sobre as origens da moral e da razão. A escultura figurativa do intelecto é feita em traços duros que lembram bustos romanos, sobretudo quando pintada a branco, apesar de em linhas mais simples; ou não fora na Antiguidade Clássica que emergem os primeiros grandes filósofos, teorizando sobre a natureza do humano, do emotivo, da organização social e das potencialidades do racional. Ela é representativa da abstração, da lógica, da criação, da cultura material que desde há muito vem sendo considerada a característica principal da humanidade e que a distingue dos animais.
Brota desta Blastogénese (2020), da ideia de um ser em gestação em direção a um percurso de consciência, a religião para que nos direciona SantoSilva. Perante uma exposição com luz baixa entre paredes pretas, o íntimo, o sagrado e o murmúrio estão presentes nesse símbolo que é a cera de vela, ligada às cerimónias religiosas cristãs, a um tempo longe da modernidade com eletricidade, à medievalidade se formos cinematográficos. Essa vela que traz o silêncio, a semiobscuridade, a solidão, o sussurro parece ser um prolongamento natural das interrogações filosóficas de Maia e Serra. Além dos enterros cerimoniais, das capacidades de raciocínio, uma das grandes características do Homem é a busca de explicação para os fenómenos que o ultrapassam, a capacidade de fé, a busca de algo maior que ele próprio, de uma omnisciência que o apadrinhe. SantoSilva cria-nos esse caminho para que o exploremos.
A exposição Colosso – a viagem, o último dos seus núcleos, está em exibição até ao dia 20 de janeiro, na Brotéria. Uma conversa entre os artistas e os curadores do espaço sairá em podcast em breve.