Alguém, ninguém, de Pedro Pousada, na Galeria Pedro Oliveira
“(…) não se está mesmo a ver que o laborioso pedaço de literatura que componho, desde o início desta estrofe, seria talvez menos apreciado se se apoiasse num espinhoso problema de química ou de patologia interna?”[1]
– Conde de Lautréamont
Alguém, ninguém, título da exposição de Pedro Pousada na Galeria Pedro Oliveira, adivinha tratar-se de uma verdadeira metamorfose. Enaltecendo mais do que um apagamento do nome da exposição, constrói sobre si uma extraordinária galeria de desumanidade, violência e crueldade, povoada de seres híbridos, que tanto podem ser vítimas como carrascos, em cenas animadas por uma mistura explosiva de maldade, ganância ou cobardia.
Comecemos pelo texto com que me debati ao chegar à exposição – por si uma obra capaz da literatura –, que me levou a vaguear nas palavras de Conde de Lautréamont. Isto é, problemas espinhosos são uma coisa, a arte é outra coisa. Na exposição, o artista apropria-se da linguagem, concebendo novos e estranhos efeitos que práticas anteriores aplaudiram e sancionaram – note-se a acumulação de elementos horríveis e a repetição compositiva de situações produzidas pela estrutura fragmentada da exposição –, resultando, passado o choque inicial, num efeito de estranheza primeiro e de reconhecimento depois, banalizando aquele mundo grotesco e permitindo ao espetador estar disponível para o trabalho que tal linguagem comporta.
Ou seja, o ser, que faz parte do mundo, mantém um extrato de corporeidade que conserva, com este, uma promiscuidade absoluta. Carregando consigo os sentimentos, a história e a vivência, um passado e um futuro que decorrem dessa relação viva que brota diante dele. É nesse extrato do corpo que se manifesta o espírito do artista, “(…) o espírito se vê e se lê nos olhares (…) que se oferecem a nós encarnados, aderidos a um rosto e a um gesto”.[2]
A obra de Pedro Pousada é espiritual no sentido em que promove o ser e cria um mundo onde não há semelhanças, mas expressão. Não chamaremos aqui esse espírito interior, como o faz Kandinsky,[3] mas da expressão do corpo, que emana do contato com o mundo e proporciona a obra, viva nas cores e na tela do artista. O espírito que brota da sua obra não invalida a perceção nem tão pouco impossibilita a experiência do mundo. Não existe uma dependência de qualquer faculdade que inaugure uma representação anterior à vivência, porque é o pintor que possibilita a experiência e é no tecido do mundo que se dão todas as significações humanas.
Tal como Conde de Lautréamont, Pedro Pousada suspende esses hábitos e revela a base da natureza inumana sobre o qual o ser se instala. Por isso os seus personagens são estranhos e como que vistos por um ser de outra espécie. Pousada provoca essa falta de familiaridade porque alcança o mistério – mistério esse que é manifesto no contacto direto com o mundo e que o pensamento suprime a partir de uma reflexão que não retorna novamente a este plano. Inevitavelmente, habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e é inabalável.
Procurar respostas para tratar problemas sobre a arte contemporânea num filósofo do séc. XVIII pode aparentar anacrónico; todavia, senti-me reconfortado refletindo sobre esta ideia perante a obra de Pedro Pousada. Para David Hume, o cerne do problema no mecanismo de imaginação encontra-se não apenas na fusão de ideias, mas, também, na simplificação de ideias mais complexas – como impressões de objetos ou traços de memória –, o que possibilita que tanto o conceito de “átomo da memória”, como o de “cognição”, possam ser comparados à ideia de “jogo livre de significantes, dentro de um universo de diferenças”.[4]
Em suma, e tecendo um entendimento sobre este “jogo livre de significantes”, será pertinente relatar o seguinte: “(…) quase no crepúsculo, [Milu] informa o duo que a viagem se tornara perigosa e que ‘os mortos não aceitam dinheiro, querem mais’”. “Milu, eles não acreditam nisso, e quem não deve nada, não teme nada”, afirmou Juju. “Eles não têm que pagar mais nada aos mortos”. “Eles podem não acreditar (…)”, ela respondeu, “(…) mas o problema aqui é a crença dos outros”. “O mal pode vir e não quero que o mal caia sobre o João e o Pedro. É apenas por uma questão de amizade. Os mortos querem dinheiro, e estou apenas a desempenhar a minha parte por amizade a eles”.[5] Este jogo criado a partir da semelhança do ser balanceia este hiato entre o real e o irreal. Permitindo que outras obras, movimentos, tempos e visões grotescas intercedam e forneçam diferentes construções mentais, no mesmo espaço temporal e geográfico, como em Alguém, ninguém.
Alguém, ninguém de Pedro Pousada está patente na Galeria Pedro Oliveira, Porto, até 6 de janeiro de 2024.
[1] Pseudónimo de Isidore Ducasse, Uruguai, 1846-1870.
[2] Merleau–Ponty, Maurice, 2004, The World of Perception, Nova Iorque: Routledge, p. 135.
[3] Kandinsky, Wassily, 1996, Curso da Bauhaus, São Paulo: Martins Fontes, p. 53.
[4] Owen, David, 1999, Hume’s Reason, Oxford: Oxford University Press, pp. 76-77.
[5] Gusmão, João Maria e Paiva, Pedro, 2014, Teoria Extraterrestre, Milão: Mousse Publishing, p. 222.