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Isto não é um poema, mas uma história de amor. 20 anos de Adorna

Punk. Rebelde. Insubmissa. Obstinada. Sonhadora.

Assim é a semente do projeto Adorna, o mesmo que dizer da pessoa que lhe deu origem. Estefânia r. de Almeida, a adolescente que um dia resolveu talhar um novo rumo e renunciar à nacionalidade francesa, abraçou Portugal de vez e, desde então, nunca mais nos largou. Desde 2003 dirige a galeria Adorna, ato que começou num gesto artístico virado à joalharia contemporânea que, mais do que em linhas retas, encontrava propósito quando modelada em objetos-instalação, cruzamento sem cerimómia entre a escultura e a performance, mais tarde aliou-se à fotografia, segundo uma abordagem reconhecidamente moderna, eclética e sem censura. Toda ela tridimensionalidade e hibridez. O certo é que à própria é impossível negar a mão artística, curatorial e artífice, hábil e diligente, afeiçoada que está ao manejo de materiais e ferramentas; tampouco a voz frontal sem rodeios, que reclina o excesso de adornos e vírgulas capazes de tornar o discurso hermético. Conduta que prioriza o gosto pessoal à possibilidade de venda, risco que se corre por amor à camisola, mais do que à necessidade de sobrevivência. Dificuldades sempre as há.

Quanto à galeria, regida por escolhas pessoais, manifesta aquilo em que Estefânia se revê, tão pluridisciplinar na forma quanto no motivo – expandindo a fotografia à performance, videoarte, escultura ou música. Um espaço de exposição de artistas nacionais e internacionais que, mais do que isso, é ponto de encontro e partilha entre público, obras e seu autor.

Este ano a comemorar 20 anos, a Adorna convida todos à Rua do Rosário, no Porto, para mais do que à imagem fotográfica, haja um brinde à arte no geral, à perseverança de quem diariamente a promove, e a quem dela faz vida e/ou pela sua visita motivo lhe dá para mais e felizes anos de existência.

Nasceste em Paris, mas vives em Portugal desde 1994. Que história te trouxe até cá?

O grande motivo foi ter conhecido, aos meus 15 anos, um grupo de pessoas fascinante, todos eles alunos de belas-artes, arquitetura e filosofia, criadores de vanguarda nas áreas da música, da performance e outras, com os quais me identifiquei de imediato. Tínhamos um espírito livre, emancipado e fértil, partilhávamos muitos interesses, promovíamos círculos de cinema e jantares pseudointelectuais. Eu, entre França e Portugal na altura – os meus pais eram emigrantes e, portanto, tinha uma casa cá – acabava por ser uma ponte para a cultura francesa, desde a arte visual, à literatura ou à moda, enquanto deles bebia os ideais e o pensamento livre. Éramos de igual para igual. Nunca senti desigualdade na então pequena cidade da Póvoa de Varzim, nem mesmo no Porto, por comparação a Paris, onde convivia com conservadorismo, interesses triviais, falta de abertura, autenticidade ou empatia. Na realidade, eu detestava ser francesa e filha de emigrantes, momento em que tive uma epifania: sem negociar com a família, nem sequer falar no assunto, revoguei a nacionalidade francesa aos 17 anos e tornei-me portuguesa. Um ato de puro anarquismo.

Até que em 2003 nasce o projeto Adorna Corações dedicado à joalharia contemporânea. Anos mais tarde passando a incorporar uma galeria de fotografia e, finalmente, evoluindo até hoje, no que é atualmente a Adorna – espaço de reflexão, encontro e reconhecimento da prática da fotografia contemporânea. O que aproxima e separa estas duas paixões?

Diria que a fotografia e a joalharia contemporâneas se aproximam no facto de serem ambas facilmente desvalorizadas no mundo da arte. Outro ponto em comum é a fisicalidade de ambas as práticas. Não creio ser importante a procura pelas suas diferenças, já que cada vez mais a fotografia contemporânea se torna tridimensional, extravasando a folha de papel, ao passo que a joalharia contemporânea é cada vez menos um adorno e mais um objeto de arte.

Consegues reconhecer o momento em que o teu foco passou a ser mais direcionado à fotografia do que à joalharia?

Na verdade, já naquela altura, em 1994, eu estava muito ligada à fotografia e à imagem. Era assistente de realização para o canal France Culture e tinha começado um curso de fotografia, que acabei por abandonar por sentir que não tinha jeito. No entanto, não me fiquei pelas aulas, e foi assim que aprendi muito com outros grandes mestres, que naquele tempo fervilhavam em Paris: os museus e as galerias de arte, desde Beaubourg, Fondation Cartier Brésson, a galeria de Viviane Esders, mais tarde Rencontres d’Arles, entre tantos outros. Além disso, o meu irmão tinha o curso de fotografia e ele mesmo montou um quarto escuro lá em casa. Era, portanto, inevitável a minha ligação a este mundo, e foi assim que comecei a colecionar. Ou seja, quando abro a Adorna Corações já existia a semente, foi apenas uma questão de tempo para criar oportunidades para expor; o que se processou naturalmente. Em 2015 já quase não fazia exposições com instalações na área da joalharia, e começava a ter cada vez mais artistas e propostas fortes de exposições fotográficas. Assim foi. Até que em 2019 se dá a cisão, inclusive com a mudança de nome.

Mas continuas ligada à criação contemporânea de joalharia?

Sim, porém só criando peças a pedido, seja para participar em exposições, seja para clientes e amigos, as quais podem ser mais artísticas ou tradicionais. Ainda que o meu interesse criativo seja do foro escultural, tais como objetos-instalação.

Sobre a Adorna hoje, que características dirias serem as que melhor espelham a atividade da galeria e a escolha dos artistas com quem colaboras?

Em primeiro lugar, o meu gosto e escolhas pessoais. Tanto mostro o trabalho de artistas que sempre adorei e luto para expor, como o de emergentes com quem me cruzei acidentalmente e aí me apaixonei. E depois, o facto de ser incapaz de trabalhar com artistas que não sejam pessoas íntegras, generosas e que respeitem o outro. Se queremos que a arte tenha o mínimo de possibilidade de acrescentar algo melhor neste mundo, não podemos perder tempo a trabalhar com pessoas que não respeitam o próximo. Além de me atrair, claro, a pertinência e a mensagem do trabalho.

E este ano celebram-se 20 anos de Adorna, uma data muito bonita ao serviço do púbico e da cidade do Porto. Contudo, e por certo, são caminhos que se trilham sempre com algumas pedras e contratempos. Quais as maiores barreiras com que atualmente te deparas?

Vivendo numa sociedade capitalista, a maior dificuldade é manter as portas abertas deste que é um espaço independente, gerido apenas e totalmente por mim e que nunca recebeu qualquer tipo de apoios, sejam do estado ou de privados. Verifico ainda alguma resistência e falta de envolvimento por parte de certos estratos sociais do público portuense, no que respeita ao trabalho artístico produzido por alguém de fora do seu círculo social.

Todavia, em duas décadas também se aprende muito sobre tolerância e a resiliência. Retiras alguma lição deste percurso?

Várias. Que devemos estar em constante atualização, abertos e disponíveis; que nada se faz sozinho; e a importância de escutar os outros, mas também – e sobretudo – a nós mesmos, sem medo de cair no ridículo, ou de fazer/ambicionar aquilo que nos parece impossível.

Até porque só quando percebemos que somos parte integrante e ativa do mundo, é que conseguimos efetivar nele uma mudança ou concretizar o “impossível”. Posto isto, já “agiste” o suficiente, estando onde sempre desejaste, ou permanecem sonhos por realizar?

Estou muito feliz com o percurso até aqui, mas claro que mantenho sonhos no horizonte. Sinto-me realizada quando vejo artistas que fazem parte da Adorna a entrar em museus, como aconteceu ainda este ano com Michael Ackerman no Pompidou. Obviamente que isso leva tempo e nunca é garantido. Não nego que é excecionalmente bom sermos reconhecidos por instituições estabelecidas, ainda que em primeiro lugar esteja o reconhecimento feito pela minha comunidade, aquela que me rodeia e é constituída por pessoas que são um pouco outsiders do mundo da arte mais institucional. Esse reconhecimento, sim, completa-me.

Sobre a celebração dos 20 anos, o que podemos esperar?

A comemoração oficial decorrerá a 20 de janeiro (em paralelo com as inaugurações simultâneas da Miguel Bombarda). Até lá, ando em preparativos e as portas estão abertas à visita de todos que queiram acompanhar a montagem da exposição. Será uma coletiva sob o tema Retrato, numa abordagem que brinca, em toda a sua conceção, com as expectativas de como deve ser feita a celebração do aniversário de uma galeria de arte. Veja-se que extravaso o tempo oficial de abertura (em 2024 a Adorna já não faz 20 anos), acrescido do facto de conjugar obras do acervo da galeria com obras colecionadas a nível pessoal, as quais não estarão à venda. Recuperando os antigos formatos expositivos, as paredes estarão saturadas de obras, enquanto no mezanino criei uma sala escura, onde um único projetor de slides de bandeja permitirá o visionamento de uma seleção de retratos do projeto Lázaro de Bruno Silva, acompanhado por uma música desenhada por Veredas.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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