Notes on Perception: Xavier Ovídio e a sua reflexão sobre o, tantas vezes, irrefletido
Artista interdisciplinar, Xavier Ovídio tem mantido na sua prática artística – e quotidiana – uma certa resistência ao desenvolvimento tecnológico, embora não lhe consiga fugir diariamente para captar de forma atenta o ambiente à sua volta. São muitos desses registos, captados pelo telemóvel, que dão dimensão à sua obra, através de um trabalho de memória recorrente, em que a rotina, o quotidiano e a cidade se assumem variadas vezes como personagens principais na cenografia que é o mundo – no qual todos somos atores.
Com curadoria de Sofia Marçal, Notes on Perception testemunha esse processo criativo, propondo uma abordagem expandida sobre a paisagem, tanto visual como sonora, a partir do ponto de vista da perceção – com base na obra Fenomenologia da Perceção de Merleau-Ponty[1]. Esta abordagem, ensaiada através de cerca de uma dezena de obras, coloca em tensão as relações entre natural-urbano, recorrendo a jogos de lógica e ironia que refletem sobre o tempo do quotidiano citadino. Assumido em dois atos – Floresta e City Birds –, a relação simbiótica entre ambos é, contudo, evidente, contaminando a paisagem sonora de um todo o ambiente da paisagem visual do outro, numa experiência estética multidimensional, imersiva e cenográfica que ocorre na relação com o espaço e na forma como somos forçados a circular e a adentrar-nos numa paisagem simulada através de múltiplas imagens – ou não fosse “a experiência percetiva (…) uma experiência corporal”[2].
Ao entrar no antigo Laboratório de Pirotécnicos do Departamento de Geologia, no Museu Nacional de História Natural e Ciência (MUHNAC), deparamo-nos com uma paisagem encapsulada, conservada num espaço que, pela presença da luz natural, nos remete ao imaginário de um jardim de inverno. É nos, contudo, complicado distinguir em diversos momentos se estamos dentro ou fora desse jardim – veja-se a presença da pintura S. Tomé no exterior da sala, visível apenas através da janela, ou a Floresta, vista a partir da janela da sala em que se encontra City Birds – numa tensão permanentemente que depende da perceção de cada um, na qual as janelas (elementos familiares no imaginário artístico de Xavier) são peças-chave neste diálogo.
Esse trabalho da perceção é levado ao extremo ao longo de toda a exposição, seja através da escolha dos materiais utilizados para as estruturas-esculturas (resíduos plásticos que à primeira vista parecem madeira); na materialização do som dos pássaros em desenhos de partituras musicais que partem da perceção pessoal do artista (que Oiseaux Heureux ou Oiseaux Mystérieux exemplificam); nas pinturas estendidas em que a frente ou o verso são quase indistinguíveis (como Raízes ilustra); ou, exponencialmente, nos sons digitais, humanizados e urbanos de City Birds que impercetivelmente se assemelham à ambiência de uma floresta tropical, na qual ruído e poluição sonora adquirem um lado poético através da transposição de significados e sentidos – que nos relembram de que é esta muitas vezes a única natureza possível de contemplar na azáfama dos espaços urbanos, ou como esta nos pode passar quase despercebida (tal como left over), e por isso irrefletida.
Se nesta se fazem ouvir os sons da Alameda, em Lisboa, outras geografias pontuam todo o projeto expositivo em anotações ou representações pictóricas, mapeando a realidade quotidiana e emocional de Xavier por meio de um trabalho de memória que simula um tempo-espaço utopicamente ali reunidos – não será este projeto a materialização de um retalho de memórias pessoais aqui condensadas? Só a perceção poderá responder. Mas é sim um lugar-estufa, marcado pela tensão natural-humano, vista com uma certa distância e desprendimento, só possível através da subjetividade da perceção, que expande e aumenta a dimensão e complexidade de uma paisagem em constante crescimento.
É no meio de toda esta simulação, fantasia, utopia e (i)realidade que surge um exemplar real de Nymphicus Hollandicus, vulgo Caturra, proveniente do laboratório de taxidermia do museu, ironicamente instalada na estrutura sem aves (Pas d’oiseaux). Será ele o único elemento “real”? Ou será o único ponto de irrealidade nesta paisagem, pela impossibilidade de, dada a sua condição inerte e distante, fantasiar verdadeiramente sobre ele? A linha entre o real e irreal torna-se cada vez mais ténue. É tudo uma questão de perceção. Certo é que é ele símbolo da cristalização do tempo, este que neste espaço se quer igualmente mais presente do que passado, numa construção coletiva permanente que mostra como cada um de nós faz parte e influencia este sistema complexo de relações e tensões – que as pegadas dos visitantes vão testemunhando.
A propósito, foi nesse mesmo dia, pouco tempo depois de ter visitado a exposição, que um amigo partilhava comigo, sem motivo aparente, uma frase que lhe fora sugerida por uma famosa e clichê aplicação de astrologia: “Your perception is overly affected by your recurring thoughts”. Parece, pois, que quiseram os astros alinhar-se para me recordar que, de facto, a perceção carrega em si o enviesamento das experiências pessoais e coletivas e dos pensamentos próprios da reflexão de cada um. É subjetiva. E é assim que o tempo e espaço cristalizados e simulados por Xavier Ovídio, através deste projeto expositivo, se assumem como impossivelmente estanques: por dependerem da perceção de cada um que com eles se confronta.
E foi esta a minha perceção. E foi assim que habitei esta paisagem. E testemunha este texto o registo das minhas notas sobre esse confronto.
Notes on Perception, de Xavier Ovídio, pode ser vista no MUHNAC até 29 de fevereiro de 2024.
[1] Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Éditions Gallimard.
[2] De acordo com Merleau-Ponty, citado por Nóbrega, T. P. (2008). Corpo, perceção e conhecimento em Merleau-Ponty, in Estudos de Psicologia, 13(2). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte. p. 142.