Two Feet by Six Feet, de Hans Schabus
Quanto deste espaço existe em mim? Em alternativa, quanto deste corpo – amorfo, débil, monstruoso – existe neste espaço? Este corpo, que é proporção, encontro e medida de uma relação com o exterior e o outro.
O espaço construído é uma cumulação de métricas hipotéticas, idealizadas, abstratizadas. No início da sua formação, ao arquiteto é perguntado: onde está o teu metro? É-lhe pedido: encontra, no teu corpo, o teu metro. Porque a polegada foi decepada e o pé amputado.
O metro é um braço estendido, mais o amplexo curto de um ombro ao outro. Mais ou menos. Cada vez menos, na verdade, conquanto mais deformado vai ficando o corpo. Esse braço estendido, mais o que vai de um ombro ao outro, tem sido a minha forma de medir o espaço: encostado às paredes, ora giro sobre a extremidade mais extrema do braço – dedo médio em riste –, ora giro sobre a extremidade mais extrema do ombro. E assim vou medindo o espaço, numa valsa tosca e hirta, descobrindo metros e centímetros em cada alinhamento, mas percebendo quantos de mim cabem nesse espaço, que deixa de ser espaço e passa a ser lugar – uma construção agora ocupada de memórias e identidades desconexas em perpétua transmutação. A perceção que tenho do espaço-identidade é agora feita através do corpo-identidade, do meu corpo, amorfo, débil, monstruoso, entre a conceção abstrata universal do sistema métrico e a conceção individual, pessoal, idiossincrática, do corpo como medida das coisas, do mundo, da vida.
Le Corbusier esteve quase certo: o Modulor podia ter sido a alternativa ao sistema métrico, não fosse a obsessão moderna de idealizar o protótipo perfeito, de imaginar o corpo ideal, universal, a partir do qual se podia medir um mundo, que nunca poderia ser o mundo.
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Two Feet by Six Feet, de Hans Schabus, é um ensaio sobre esta perceção do corpo enquanto medida, do espaço e das múltiplas relações – mais ou menos métricas, mais ou menos corpóreas – que os constituem. O que vemos no Ateliê do Rego é uma proposta compositiva de um corpo a ocupar um espaço. Por outra via, o que vemos no Ateliê do Rego é uma proposta decompositiva do que constitui uma identidade – simultaneamente reflexo de um lugar e de um corpo. Com efeito, é através do corpo e do espaço – ocupado e preenchido por muitas e diversas entidades – que ganhamos uma noção de individuação e subjetivação.
Hans Schabus não é arquiteto. Mas a sua prática radica numa reflexão profunda sobre a natureza humana, social e política do espaço e respetiva perceção, sempre mediada por questões de pertença, presença, ausência, temporalidades múltiplas e concomitantes, formas tangíveis ou espectrais. Vêm à memória as grandes referências da fenomenologia. Encontramos em Schabus ecos de Gaston Bachelard e Maurice Merleau-Ponty e dos estudos que cada um encetou sobre as poéticas do espaço e as múltiplas camadas sensoriais, psicológicas e fisiológicas da perceção. É o corpo que faz essa mediação e transição entre espacialidades, é ele quem transita, experiencia e percorre as geometrias visíveis e invisíveis do espaço.
Desse palimpsesto que é o espaço podemos inferir o sujeito e as fibras nervosas de que é feito. Deambular por Two Feet by Six Feet é ter acesso aos vários estratos sociais e psicológicos que compõem Hans Schabus. Em três obras diz-nos quem é, como é, o que faz e de onde vem, numa tentativa de aproximação ao espectador, conectando-se, à distância, para um diálogo introspetivo. A pouco e pouco, compomos uma imagem mental do artista através das suas botas de trabalho, da sua altura delicadamente registada por um cabelo numa fita métrica, da sua caligrafia na carta de apresentação que redigiu em português. A Arte, para Schabus, é uma coisa profundamente pessoal. A Arte é sobre o artista e o seu cosmos.
São três as obras. Porque são três essas (de)composições. Não são necessárias mais. A economia das peças é inversamente proporcional à sua intimidade e dimensão. Hans Schabus está presente na sua ausência, um oxímoro que só a Arte valida e torna plausível. Cumprimenta-nos, saúda-nos – a mão do projeto editorial Esconso #2 que nos acena, “Hi, how are you?”, e pede por um toque, uma marca, um afeto, uma comparência.
A instalação de Two Feet by Six Feet num ateliê não é por acaso e demonstra a afinidade entre a obra de Hans Schabus e a dos anfitriões Nuno Sousa Vieira e Rita Gaspar Vieira. O ateliê é, para os três, um lugar de representação permanente do mundo e das diversas matérias de que é feito. É no ateliê que se cria o sentido para a vida, entre estratégias de aproximação e afastamento, construção e desconstrução, criação e recriação. É no ateliê que se formula e trabalha uma hipótese de realidade, certamente recheada de tensões e conflitos, mas também de afetos e partilhas.
Two Feet by Six Feet, de Hans Schabus, no Ateliê do Rego, é um projeto curatorial de Nuno Sousa Vieira e Rita Gaspar Vieira.