As formas da natureza
As formas da natureza, os seus fragmentos, folhas douradas, pequenos galhos, insectos que se fundem nesse aglomerado, surgem indistintas, corpusculares. Apresentando uma ligação ao universo cosmológico e ao registo do espaço sideral, por meio da cosmografia e fantasia espacial que, desde o início da década de 70, do séc. XX, e até hoje, ocupa a mente humana.
Os pequenos pontículos, vestígios orgânicos, deixados sobre fundos de cor diversa, compostos e fotografados depois pela artista Manuela Marques, transporta-nos para uma ideia de natureza que se desintegra, sob a ameaça de um ambiente que parece colapsar a qualquer momento, com os recursos a rarear e os fenómenos a radicalizar-se cada vez mais nos seus efeitos.
Aparenta, por isso, desencadear-se uma ligação da obra com a uma ideia de fim, de presságio, e, ao mesmo tempo, o sentimento de nostalgia, de prenúncio de perda, e de efeito de comoção.
Por detrás de uma delicada e branda formação de fragmentos naturais, espalhados sobre bases coloridas, emana um certo desassossego das coisas do mundo que ameaçam ruir a qualquer instante, e que, num misto de impotência e inevitabilidade, observamos, sem capacidade efectiva de resposta.
O indistinto, o brumoso, a propriedade do que é nebuloso, por detrás das imagens, parece manter-se nas obras de Manuela Marques. Agora presentes na exposição ACCROCHAGE, na galeria Rui Freire até 27 de janeiro.
As fotografias de Marques, surgem-nos dispostas, na galeria, em profunda ligação umas com as outras, da mesma forma como nos terá sido descrito por Léa Bismuth, no catálogo da exposição Echoes of Nature, realizada, em 2022: “as fotografias conversam umas com as outras, encaram-se mutuamente e acabam por descrever uma cartografia imaginária, de que seria preciso desenhar os contornos, na sua fluidez não fixada”[1].
As obras fotográficas, nomeadamente as séries Graine, Fruit e Lacis, remetem-nos precisamente para uma ideia de realidade “não fixada”.
Num corpo de trabalho que aponta caminhos no sentido de um pensamento mais assente em fluxos e torrentes, faz-nos tornar mais evidente, e urgente, o conceito de abertura da obra, e a sua indubitável loquacidade.
Era precisamente Ortega y Gasset que referia, na sua obra A desumanização da arte o seguinte: “As nossas convicções mais arreigadas, mais indubitáveis, são as mais suspeitas. Elas constituem o nosso limite, os nossos confins, a nossa prisão. Pouca coisa é a vida se não existir nela um anseio enorme de ampliar as suas fronteiras. Vive-se na mesma proporção em que se anseia mais. A obstinação em manter-nos dentro do nosso horizonte habitual significa fraqueza, decadência das energias vitais. O horizonte é uma linha biológica, um órgão vivo do nosso ser; enquanto gozamos de plenitude, o horizonte emigra, dilata-se, ondula elástico quase ao compasso da nossa respiração. Quando, pelo contrário, o horizonte se fixa é porque se anquilosou e nós entramos na velhice”[2].
A expansão das fronteiras, a ampliação dos horizontes no processo criativo, apresenta-se também em obras de Marques realizadas em 2022, como Explosão 1 , Explosão 2, Passage 1, 2 e 4, Phenomene 1, e Extraction.
Do conjunto de obras presentes na exposição emerge uma ideia de transitoriedade, de metamorfose, de registo de movimento. Da sua polarização em várias outras possibilidades, encontramos obras como Fruit 2 e a série Lacis,principalmente Lacis 5 e 7, onde podemos percepcionar uma das propriedades mais importantes no exercício da fotografia, a luz. Ou a ideia de transmutação do enquadramento, como limitação, segundo Deleuze.
[1] Bismuth, L (2022) Atlantic Conversation. Catálogo “Echoes of Nature”, MNAC, pág. 5
[2] Ortega y Gasset (2018). “A desumanização da arte”. Nova Vega. Pág. 84