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R!™0: Pedro Tudela no Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso

A rotina diária cíclica e desenfreada em que nos sentimos embrenhados, muitas vezes sem tempo para a reflexão e a contemplação, está envolta em padrões repetitivos, que marcam a cadência das nossas vidas. Apresentando-se como um manifesto artístico, R!™0 de Pedro Tudela no MIECST, é uma afirmação de que a repetição é uma noção fulcral da contemporaneidade. Desconstruindo e suspendendo essa cadência, a exposição materializa no espaço uma espécie de pauta. Enfatiza a repetição, provocando a atenção para essa métrica, porém deixando tempo e espaço para a contemplação, necessária a um pensamento crítico acerca da envolvente. O projeto expositivo também pensa a urgência da crise climática, enquanto tom grave da partitura apresentada, numa advertência, de que pensar a ecologia também envolve questionarmos a nossa perceção do tempo.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (n.1959), em O Aroma do Tempo: Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora (2009), explana a tese de que, na contemporaneidade, a crise temporal que sentimos está relacionada com um sintoma de dispersão temporal e não de aceleração. Que a sensação que temos de que a vida está mais acelerada, resulta do modo como percecionamos o tempo aos solavancos, sem rumo, nem fim, sem sermos capazes de o controlar. Reforçando que esta crise está conectada a uma absolutização da vita activa, que nos leva a um imperativo do trabalho, ou seja, a uma rotina diária sem tempo para a contemplação, ou para a demora. O autor afirma: “A crise temporal só será superada no momento em que a vita activa, em plena crise, acolha de novo no seu interior a vita contemplativa[1]. De acordo com o autor, a ciclicidade do nosso quotidiano, subjugado a uma rotina de trabalho, leva-nos a entendê-lo de uma forma acelerada, em que não é possível a contemplação, porque mesmo na pausa, na espera, ou na demora, estamos sempre a arranjar pretextos para a ação. Quando esperamos pelos transportes públicos, por uma consulta ou uma reunião, muitas vezes estamos a ouvir música e ao telemóvel, muitas vezes sem nos darmos conta do que se passa em nosso redor. Trabalhamos, e nos tempos livres, perpetuamos os mesmos hábitos rotineiros, mas conduzidos ao lazer, sem pararmos para ouvir e sentir. Gastamos o tempo num ciclo incessante, ou como Tudela sugere, numa repetição constante. A crise ecológica atual também advém deste enquadramento, pelo facto de que, ao repetirmos hábitos de vida e de consumo, não nos damos conta do desgaste do nosso tempo, assim como do planeta. Os recursos que gastamos a tentar dar um rumo ao tempo esgota e violenta todos os seres que vivem connosco, inclusive o nosso habitat.

Em R!™0 somos absorvidos por essa ideia de repetição. Primeiramente, através de R:0-8 (2023), um conjunto de oito peças cerâmicas e bolas em ferro, pautando o início da partitura, sugerindo profundidade pelo material brilhante e refletor, perpetuando a peça e o nosso reflexo até ao infinito. Do mesmo modo, R:al (2023), uma escultura que se assemelha a uma ampulheta em que a areia é vidro, numa espécie de cristalização do tempo, enfatiza a premissa da exposição, confrontando-nos com a noção de paragem do tempo. No entanto, é no corredor principal do espaço expositivo, em que ainda vemos vestígios do antigo mosteiro, que sobressai R:C-E_Loop (2023), constituída por uma casa de madeira, escada em ferro, poste de madeira, alto-falantes, corneta e som em 3 canais, que se vão desenrolando ao longo do espaço, envoltos pelo vídeo Rastos (1997). A instalação confronta o espetador com a ideia de repetição, pelo constante ruído que vamos ouvindo e que sai das peças, pelas imagens em movimento que mostram um olho com um alto-falante no meio em loop, assim como pela materialização do tempo através das formas e dos materiais escultóricos.

No piso inferior, igualmente se destaca a instalação GT_S – orechio del suono (2019), onde oito cabeças em cerâmica estão, cada uma, sobre oito mesas com tampos em espelho, colocadas ao longo do espaço juntamente com cabos elétricos, num ambiente com luz pontual e sons de pássaros. Esta espacialidade remete para a contemplação, mas também para a interrogação sobre aquelas esculturas pintadas de branco com caras desfiguradas. Temos uma outra perceção do tempo quando deambulamos por entre aqueles seres, por entre sons naturais e enigmáticos. Do mesmo modo, salientamos o vídeo Chaves e Sombras (2020), num plano em que a perceção do tempo é sentida de forma muito ténue. Um momento de pausa, e mais uma vez de contemplação, perante o ciclo desenfreado do nosso quotidiano, em que necessitamos de parar, ver, mas sobretudo escutar. Não descurando R:memória (2023), uma instalação em que uma cabeça de águia em ferro se destaca de um banco em madeira, com espelho, que nos inquieta pela imponência do animal, mas também um alto-falante com som instalado na parede, que sai de um sino de vidro soprado no chão, que causa estranhamento pelas formas e pelos materiais, numa espécie de metáfora pelo imperativo do tempo repetitivo no quotidiano.

A exposição de Pedro Tudela no MIECST proporciona uma experiência sensitiva, em que não só apenas os sons, como os elementos escultóricos, reverberam cadências e métricas, mas também estranhamento, permitindo questionar a perceção do tempo, a importância da contemplação e os nossos hábitos diários perante a atual crise ecológica.

 

[1] Han, B.-C. (2016). O Aroma do Tempo: Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora. Lisboa: Relógio D’Água, p.11.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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