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Fragmentos de Pomar

O Atelier-Museu Júlio Pomar abriu ao público em 2013 com a exposição Em torno do acervo, uma primeira exploração da extensa obra do artista, um primeiro mergulho. O espaço em si era, desde logo, um convite, pela amplitude e pela luz natural, ou não fosse pensado por Álvaro Siza Vieira. Desde então, este Atelier-Museu tem sido uma referência para contínuas explorações do acervo do próprio, quer em formato individual, quer em diálogo com outros artistas (Pedro Cabrita Reis, Rui Chafes). A celebração do 10º aniversário da instituição traz-nos nova exposição, relembrando os núcleos de temas sedutores para o artista: a sua luta política de estética neorrealista; o bestiário que constrói com simplicidade; a admiração por figuras literárias clássicas; o autorretrato e o retrato; o erotismo inescapável.

Obras como Mulheres na Lota, mineiros na Estrada Nova e a ilustração de pescadores da Nazaré, numa estética própria do neorrealismo, procuram representar essa entidade abstrata que é o povo. Não o povo de António Ferro, da busca da aldeia mais portuguesa de Portugal, mas os trabalhadores em tons sombrios: dos que são calados. Neste núcleo de compromisso com a causa social há um retrato de um homem amordaçado que nos lembra nitidamente a arte de José Dias Coelho, acompanhado de uma das obras mais conhecidas de Pomar – uma figura feminina envolta na subjugação da autoridade, do poder e da repressão em Resistência (1946). Há, depois, um momento de diálogo, criado pelos curadores, de justaposição entre as suas posições políticas no tempo da Ditadura e Guantánamo I (2004), criado na altura em que foram postos a descoberto os tratamentos desumanos na prisão americana. A opressão repete-se.

A seu lado, a redescoberta, debaixo de muitas camadas, dos murais feitos para o Cinema Batalha, depois tapados aquando da sua prisão pela PIDE, constitui uma das grandes novidades expositivas do Atelier-Museu no último ano. As fotografias dessa época e as cartas trocadas entre o cinema e a polícia política trazem-nos representações de uma certa conjuntura política. Júlio Pomar pertence à geração cuja expressão plástica ainda foi sequestrada pelo regime ditatorial, sendo este um acontecimento inaugural do seu percurso.

Frente a frente com o desejo de uma expressão do coletivo, o retrato. Há retratos de pessoas que admira, retratos de si feitos por amigos e autorretratos – estes últimos objeto de várias experiências, completando um retrato seu feito por um amigo e desdobrando-se inclusive em autorretratos de autorretratos. A imagem do Eu e do Outro, o que caracteriza a individualidade, o que em nós é expressão, emotividade e geometria. Esta seção parece trazer também uma certa bonomia, a informalidade da relação consigo próprio e com os que lhe são próximos.

No andar de cima, os animais são desconstruídos, apresentados em laranjas e azuis, sobretudo. É o que pulsa e tem som que aqui se mostra como uma representação silenciosa. A seu lado, a ligação à literatura, através de figuras como Dom Quixote, associado a criações fálicas, Ulisses e os perigos da sua travessia. Este é um dos temas mais associados às suas experiências com colagens, que veio trazer novas linguagens, além da pintura e do desenho. A seu lado, figuras-tipo desenhadas como o saltimbanco e o cardeal são peças de geografia social medievalista.

Ao lado dos ensaios a tinta-da-china da representação de Histórias da Terra Negra (1959-1960), uma das suas grandes obras: o Navio Negreiro (2005-2012) e as suas dobradiças sobre tela. A seu lado, com as mesmas dobradiças, a Cartilha do Marialva (2005-2012). Sabendo da obra do mesmo nome de seu amigo José Cardoso Pires, atrevemo-nos a ver na similitude de materiais um duo entre colonialismo e salazarismo, mas que não se limitam ao tema. Também a linguagem que os compõem, a expressão independente das cores, o traço que é seu, tornam-nas peças contemplativas, solenes. Dizia o próprio: “O que é pintar? Pintar, é pintar é pintar é pintar”.[1]

Regressemos ao andar térreo para um dos seus temas centrais: o erotismo. Aos fragmentos de mulheres em fundos de cores fortes (verde, laranja, azul), juntam-se obras como o La Table de l’Architecte (1977) e Salmão, Castanho, Cinzento (1977), entre outras colagens de corpos em ângulos que se querem sexualizados, crus. Muitas obras neste núcleo ficam por expor, visto que não há espaço para tudo, mas elas cedo retornarão a um espaço musealizado que procura estar sempre em movimento.

No seu conjunto, as peças apresentadas foram minuciosamente escolhidas para representar a obra de uma vida. Não é uma exposição final, é uma (nova) antologia do melhor que Pomar nos deu, dando-nos um pouco de cada faceta da sua extensa obra. Pretende aguçar o apetite no fundo.

A exposição Júlio Pomar: 10 anos de Museu, com a curadoria de Sara António Matos e Pedro Faro, estará em exibição até 14 de janeiro de 2024 no Atelier-Museu Júlio Pomar.

 

 

[1] Pomar, Júlio. Temas e Variações – Parte Escrita III: 1968-2013. Lisboa: Cadernos do AMJP, p. 263.

Inês Almeida (Lisboa, 1993) é licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, é mestre e doutoranda em História Contemporânea pela mesma instituição. Recentemente terminou a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do colectivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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