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Fornada de Ana Vidigal e Luís Rocha na Galeria Buraco

O nome da exposição que reúne trabalhos de Ana Vidigal e Luís Rocha, unindo dois artistas de gerações distintas e com linguagens formalmente muito diversas, Fornada, aponta semanticamente para a matéria que vai ao forno, para ser assada, forjada, feita, fabricada. Tratando-se igualmente de matéria assada conjuntamente, isto é, constituindo uma ordem grupal de elementos, o termo recupera toda uma tradição modernista da arte, enfim, da criação como processo complexo, necessariamente colectivo, da tessitura de muitos tecidos à exclusão de uns, inclusão de outros, salvaguardando-se invariavelmente – por dedução ou indução, por certo assombradamente – a raiz comum do conjunto, do múltiplo, do vário. Ora, a primeira linha a tecer, ou a primeira massa a modelar e cozer será precisamente aquela que liga duas obras de dois artistas que, assim, num espaço tão exíguo quanto labiríntico, na galeria Buraco, uma cave surpreendentemente luminosa – ou iluminada, como efeito também ele fabricado – se predispõem a ser conjuntamente vistas, lidas, experienciadas.

Os trabalhos de Luís Rocha apresentam-se enquanto produtos acabados, linhas firmemente pintadas, traços verticais, como estradas bem alumiadas na noite escura. O encontro de tonalidades serve a ilusão de uma cartografia ou de uma codificação para o espectador perdido ou o habitante sem rumo. Numa das pinturas, sobre um fundo negro, linhas mais ou menos finas, em verde, vermelho e cor-de-lima, à beira de uma sugestão de luz são, afinal, a sinalização tardia, ou simplesmente imprestável, para alguém que vagueia, e assim é retido, pelo negro noturno e, daí, aparentemente transitório, no fundo por que erra. São quadros pictóricos estacionários. Como estações, do ano ou de comboios, pontos de recuperação de algum fôlego ou da decisão de terminar – mas mesmo o fim é transitório. Luís Rocha faz condensar nestes trabalhos pontos de recalibragem, mudanças vagarosas de velocidade. É, não obstante, incessante o movimento, e encantatória a sobreposição de camadas de tinta. Numa pintura em tons de verde, sobre o que parecem tratar-se de quatro canas, o clarão de dois focos de luz ofusca e corta o fundo paisagístico, trazendo a sugestão de outro corpo que se aproxima: um carro, um farol simplesmente captado no momento da incidência frontal da luz, o instante extraído de um jogo rotativo ininterrupto. Ou será um olhar devolvido, a interromper, desta feita pela presença do verde, a sugestiva organicidade natural das plantas?

As peças de Ana Vidigal – que nesta exposição opta pelo uso de cores menos vivas que o habitual – deixam a descoberto o processo criativo como uma junção dispersa de elementos que a ordem contingente em que a artista sempre trabalha desta vez lhe propõe. O antes do processo artístico e o depois-agora da visualização da peça coincidem pela mostra das costuras do próprio trabalho. Neste sentido, Ana Vidigal parece selar um pacto, pela reunião turbulenta a dois tempos da criação, com a memória, cujo caudal incerto, repleto de arritmias e indecisões, deixa de representar a ante-câmara de um quarto familiar subitamente ensombrado, para ser a câmara-ânfora em que se abrem, como numa BD, recortes de cartoons como entradas, actuantes e presentes, de sentido. Numa primeira sala um prato vidrado com uma folha colada por cima, onde pode ler-se a legenda apostrófica “Ma petite”, dois vasos reminiscentes dos recipientes em barro da Grécia Antiga, com recortes de cartoons colados em redor, abrindo para diversas cenas de expressão icónica – iconicidade gerada, em grande parte, pelo gesto decisivo e crítico do recorte e da colagem. Um dos vasos pendurado do tecto, outro assente sobre um banco, por sua vez, apoiado sobre outro banco similar virado ao contrário, junto ao chão: estrutura piramidal remissiva das estruturas de civilizações antigas, aqui, todavia, enformada em materiais pobres, longe de qualquer luxo ou fausto. Note-se, a propósito do cruzamento análogo entre elementos compositivos de imaginários de civilizações matriciais e as peças da artista, no título da sua primeira peça exposta: O que importa é a história, ou ainda o nome da segunda, Perdida no Louvre, designações que sugerem o confronto com um presente porventura não tão fragmentário quanto parece e um passado não tão sólido e total quanto a sua monumentalização, afinal, fantasiosa (mais uma história, ou o aglomerado vivo de muitas histórias) pretende.

Tanto um artista como outro, nesta mostra, trabalham sobre a superfície dos materiais, sobre as possibilidades de encontrar uma profundidade sem jogar com um fundo distante, uma altura abissal, majestosa. Tal não significa, todavia, que os trabalhos não se façam precisamente por camadas. Não deixa é de prevalecer a obstinação sobre uma imediaticidade desejável para comunicar com alguém que, vindo de fora e de um tempo necessariamente posterior – o espectador, o viajante, o homem que lembra e sonha – terá como passo incontornável a leitura destes mapas para continuar. Os pontos de difracção entre o barro dos vasos e os recortes não volvem, positiva e previsivelmente, pontos de compatibilidade. São antes dobras texturadas, carregadas de sentido, apontando para o acaso que rege a memória e a história: seja da humanidade, da pintura, da escultura ou a de cada um que se disponha a ir à exposição. O recorte será o sentido mais próximo do faro; aquele que, por excelência, reconhece sem ser reconhecido, dispensando, assim, a grandiosidade dos monumentos ou a complexidade como estratégia de legitimação de um trabalho. Daí os materiais pobres, a colagem imperfeita, a letra por vezes nítida, por vezes absorvida pelo meio, ilegível. Luís Rocha, com os seus inusitados viadutos orgânicos, presta-se à indagação sobre o possível diálogo entre o que pertence à ordem do natural e do humano. É afastada, por fim, a hipótese de o natural ser aquilo que simples e subitamente surge no espaço e no tempo, ao passo que o humano seria tudo o que vai surgindo, de tempos a tempos, sobre um trabalho contínuo, aparecendo consoante a capacidade e o engenho para ligar e desligar as máquinas no momento certo. Da mesma forma, o histórico ou civilizacional não é simetricamente oposto a uma organicidade que, em havendo testemunha criativa, pode tornar-se ecrã para outra história, outros quadros e outras vidas. O último reduto da paisagem é o de constituir extensão cartográfica sem destino fixo: estrada ou fosso, luz ou clarão.

Trabalhar sobre a superfície das coisas, mapear e sinalizar a eventual arqueologia de um terreno, de um corpo, de um quadro ou de uma escultura, como investimento fantasioso de uma vertigem por descortinar e, neste sentido, não forçosamente sugerida, nem artificialmente ostentada, nem tampouco materialmente autorizada na própria obra. Levantar uma camada e separá-la de outra, tanto nas peças de Ana Vidigal como nas de Luís Rocha, será fazê-las deslizar precisamente uma sobre a outra, exactamente como apontam os vídeos do segundo artista. As peças não permanecem, todavia, contidas em si mesmas, fechadas sobre a circunstância infinda da sua manufactura. A sugestão de extravasamento dá-se por salto, pela ponte que pode ser passagem ou balanço, a cana que é lança, instrumento de equilíbrio do funâmbulo ou material de pesca. Ou como força opositora, ponto de tensão, os dois troncos – referimo-nos a duas peças da artista -, como pontes, suspensos no ar, presos por um fio, os extremos contra a parede. Mas o salto é já para fora, como a arte já só pode ser um qualquer avesso e uma qualquer reposição perdida, de que apenas ficou a força arcaica da fornada. Colagem ou corte, fabrico ou apanha. A caça ao acaso, como a escultura em que Ana Vidigal dispõe ao longo de uma cana de pesca suspensa no ar um conjunto de objectos apanhados numa praia. De resto, caçar o acaso não será ser por ele caçado? A fornada de dois artistas, a nossa própria fornada – a mais despretensiosa pertença -, enlevados no dédalo curto e fundo, no Buraco.

Fornada, de Ana Vidigal e Luís Rocha está patente na Galeria Buraco até 16 de dezembro de 2023.

Maria Brás Ferreira não escreve ao abrigo do AO90.

Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica literária no jornal Observador.

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