Miguel Soares e o torque da metafísica sobre o real: Chance Meeting na Rialto6
Já faz um tempo, desde que comecei a escrita deste texto, que visitei a exposição Chance Meeting, de Miguel Soares, na Rialto6. Confesso, de antemão, que também não sou a melhor pessoa a tirar notas: ao revisitar o meu caderno, deparo-me com fluxos de pensamento e impressões avulsas, registados frouxamente em frases como “quem é o olhar que filma, à espera de uma manifestação sobrenatural?” e “do you know how much power we have? It’s ridiculous!”, transcrição de um excerto de um dos vídeos apresentados na mostra. Para a minha surpresa, porém, o retorno aos universos de Miguel Soares foi imediato; conservo em detalhes, na pele e nos ouvidos, aquele assombro visual e sonoro que toma por inteiro as salas da galeria, em Lisboa, até 15 de dezembro.
Em Chance Meeting, quatro das suas instalações em vídeo datadas deste ano convivem com três criações do início do milênio, mais ou menos quando esse artista multifacetado passou a concentrar-se na animação 3D. Pioneiro da arte digital no país, Soares ostenta mais de três décadas de uma carreira plural – familiarizada com a fotografia, com a música, o design e o cinema –, cujo fio condutor e compromisso comum só poderiam ser a especulação e o rigor experimental. O contraste entre as obras recentes e as imagens dos anos 2000, apresentadas à caráter em monitores já obsoletos, faz-nos refletir não só acerca do percurso artístico de um nome tão prolífico e presente nas artes portuguesas, como, também, acerca da atualidade de certas preocupações ainda embrionárias 30 anos atrás. Diante de uma estética a la Matrix e computadores que nos parecem, hoje, neandertais, fica fácil esquecer que a internet, a Google e o Big Data são realidades extremamente jovens. Que podem aqueles dispositivos passados, de um imaginário que se pretende superado, nos dizer ainda sobre o presente e, sobretudo, o futuro? Neste grande chapéu da “era digital” – que já quase não dá conta de abarcar tantos saltos tecnológicos, da eletrónica à inteligência artificial –, quais são as perguntas que ainda ficaram por fazer?
Numa entrevista[1] concedida na altura em que recebeu o prestigiado Prémio BES Photo 2007 – e que integra o catálogo da exposição das obras distinguidas, no antigo Museu Coleção Berardo –, Soares revela que há certo um método científico na sua prática criativa: da formulação de uma hipótese, passa-se ao efetuar de uma série de provas para a confirmar ou justificar. Filipa Ramos, curadora e entrevistadora, é certeira quando assinala esta curiosidade, tão característica e evidente no corpo de trabalho do artista, de testar a realidade das coisas. E, atenção, o “real”, aqui, forja-se em relações muito mais complexas do que apenas aquelas entre a veracidade e a falsidade, o possível e o impossível. Afinal, Soares já pressentia, naquela época, que as fronteiras entre o artificial e o natural padeciam de certa arbitrariedade, e se iam manchar ainda mais: “[h]á este lado fractal [no 3D] que também me interessa porque está muito próximo das ferramentas que a natureza tem à disposição, o que faz com que para mim o 3D não me pareça uma coisa de todo artificial, mas sim natural. Quase diria que me parece menos artificial do que pintar numa tela”[2].
De facto, há uma potência especial nas obras em que imagens criadas com ferramentas de modelação e animação 3D sobrepõem-se a imagens de lugares concretos – nomeadamente em MetaTouch (2023), apresentada na cave da galeria, e na peça que abre a exposição, Encounters (2023). Na primeira obra, duas esferas de metal líquido, gêmeas, atraem-se mutuamente, flutuando “em perfeita harmonia, tocando-se de tempos a tempos e teletransportando-se, quando esse toque é mais profundo, para outro lugar, onde continuam a sua viagem”[3]. Se, inicialmente, estes pontos reflexivos assemelham-se a moléculas numa visão ampliada, com o tempo da instalação e o estado meditativo a que nos convida – num loop que se coaduna com o som hipnótico de um drone de tanpura[4] – começam a parecer cada vez mais como figuras chegadas de outro mundo. Talvez, existam e vibrem, precisamente, neste momento de torque[5] entre a ficção e a matéria, entre a metafísica e a física.
No segundo vídeo, assumimos a perspetiva subjetiva de alguém a observar um beco, uma ruela deserta, à noite, até que um som trovejante, metálico e sedutor anuncia a aparição de um portal enigmático, um buraco negro, que logo volta a desaparecer. Tal qual a estrutura alienígena, o próprio olhar que captura esta imagem de natureza híbrida sugere, na verdade, a presença de qualquer coisa não-humana. Há algo de animalesco ou extraterrestre no ponto de vista que acompanhamos, cujo movimento corporal remete a um ser a farejar, ou, ainda, um objeto que paira, sem gravidade, no ar. Quiçá Miguel Soares deseje despertar a suspeita de que o desconhecido daquele encontro pode ser, justamente, o que havíamos julgado ser o real: nós mesmos.
[1] Disponível integralmente no website do artista, <http://migso.net/blog/?p=200>.
[2] Idem.
[3] Segundo descrição da obra na folha de sala da exposição, escrita por Miguel Wandschneider. Disponível em <https://rialto6.org/exhibitions/chance-meeting/>.
[4] Um dos instrumentos de cordas mais utilizados como acompanhamento de formas musicais ou performances vocais na música clássica indiana. É um instrumento excecional e intrigante devido à sua capacidade de gerar um padrão rico de sobretons, num ciclo contínuo. Utilizado em práticas de meditação, a constância deste som serve de metáfora para o eterno, o imóvel e o perpétuo.
[5] Torque, ou momento de uma força, consiste na ação de girar ou torcer um corpo em torno do seu próprio eixo de rotação por meio da aplicação de uma força.