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A Revolução na Noite, com curadoria de Ana Anacleto no Centro de Arte Oliva

Partindo do legado, influência e preponderância do surrealismo nas artes visuais, A Revolução na Noite, com curadoria de Ana Anacleto, no Centro de Arte Oliva (CAO), apresenta pela primeira vez cerca de duzentas produções artísticas, realizadas entre 1910 e 2021, da Coleção Millennium bcp, da Coleção de Arte Moderna e Contemporânea Norlinda e José Lima e da Coleção de Arte Bruta/Outsider Treger/ Saint Silvestre – as duas últimas em depósito de longa duração no CAO.

O surrealismo foi um movimento artístico e literário, desenvolvido na década de 1920 em Paris, no âmbito das vanguardas do início do século XX na Europa, como o dadaísmo, o futurismo, ou o cubismo. Influenciado pela psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), distingue-se pela exaltação do automatismo psíquico puro, ou seja, a exclusão do controlo exercido pela razão na produção artística. No primeiro Manifesto Surrealista, redigido por André Breton (1896-1966) em 1924 (quase há um século), o poeta cunha a palavra surrealismo, em homenagem ao autor Guillaume Apollinaire (1880-1918), como o melhor termo para significar essa nova forma de expressão, imbuída de um estado de devaneio onírico sem preocupações estéticas ou morais, criticando o realismo e a razão, na celebração do sonho, da magia, do mistério e da liberdade. Ressalvando que a noite será o momento mais revelador do seu pressuposto, figurada e referida inúmeras vezes na pintura, bem como na poesia. Os seus principais representantes são André Breton, Antonin Artaud, Luis Buñuel, Max Ernest, René Magritte, ou Salvador Dalí. Em Portugal, o surrealismo segue a linha francesa, com pendor na pintura e na poesia, tendo como figuras de destaque Mário Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Marcelino Vespeira, Cruzeiro Seixas, ou Alexandre O’Neill, apenas para citar alguns exemplos.

O legado que o surrealismo deixou foi uma possibilidade de questionamento dos paradigmas da lógica capitalista da sociedade burguesa ocidental do século XIX (lado a lado às outras vanguardas), assim como a tentativa de romper com as noções do positivismo e do racionalismo, mas também, e sobretudo nas artes visuais, quebrar com o realismo, introduzir o automatismo psíquico na criação artística, a liberdade formal, e a reflexão sobre a autoria, a genialidade e a singularidade do autor, por exemplo, em jogos coletivos, como o cadáver esquisito. Segundo Mário Cesariny (1923-2006) no prefácio de A Intervenção Surrealista (1997): «Nenhum movimento como o surrealismo propôs tanto, a um só tempo, uma real cidadania para todos e uma real liberdade de cada um consigo. Síntese destinada aos maiores embates porque é dos tempos e da sua política não serem do tempo único em que a poesia se coloca (…)»[1].

O surrealismo tentou desconstruir certas noções e costumes moralizadores do seu tempo, na construção de uma utopia pela arte, porém, a maior influência que nos deixou foi talvez essa capacidade libertadora na criação artística, na tensão entre a dimensão sociocultural e a dimensão pessoal e subjetiva. A psicanalista Suely Rolnik (n. 1948) acredita que Freud inventou a psicanálise no século XIX, impulsionado por uma urgência de reconectar o espírito com a pulsão, construindo esse pensamento teoricamente, mas também inventando um ritual no qual se opera essa conexão. Na tensão entre a dimensão pessoal e transpessoal da experiência humana, é comumente acionada uma espécie de alarme vital, um certo desconforto. O humano reconecta-se com a sua condição de ser vivo, que parte de um ecossistema ambiental, social e mental, para que a vida se mantenha em equilíbrio, através do desejo, na criação de novos cenários. Novos mundos e possibilidades, tanto no campo social, como também no da subjetividade. Não só daquele que participou singularmente, mas na subjetividade de todos os envolvidos, na transformação da cartografia sociocultural[2].

O movimento surrealista, partindo dessa tensão entre o pessoal e o transpessoal, reivindicou um tempo da subjetividade, da poesia e da arte, no recalque da condição humana, tendo em vista esse desejo e pulsão criadora de novos cenários e mundos. Os surrealistas, tal como Freud, sentiram que havia uma urgência em reconectar o espírito com a pulsão, sem ser através da razão, mas das sensações e da subjetividade humana. O que ainda hoje se traduz como uma das suas maiores influências nas artes visuais.

A Revolução na Noite – aludindo a Pietà ou La révolution la nuit (1923) de Max Ernst, pintura precursora do que viria a ser o movimento surrealista – propõe uma construção livre e despojada de diferentes narrativas, associações estéticas, estilísticas e simbólicas, dando azo à imaginação, mas também à reflexão sobre a importância do sonho, da poesia, da magia, ou do pensamento especulativo nas práticas artísticas e na mundividência. Princípios já referidos, como associados ao surrealismo, na proposição de pensar a sua preponderância nas artes visuais contemporâneas. O projeto expositivo desenrola-se por entre pinturas dos mais significativos autores do surrealismo português, juntamente com artistas contemporâneos, que utilizam outros meios, como a fotografia, ou a escultura, numa mescla de cores, formas e significados, numa livre associação. Contudo, a exposição destaca-se pela integração de obras de arte Bruta/Outsider, sem preconceitos ou pudores, num diálogo aberto com a arte contemporânea institucional. Na verdade, se o termo outsider art foi sugerido pelo historiador Roger Cardinal (1940-2019) em 1972, arte bruta é cunhado pelo artista Jean Dubuffet (1901-1985) no final da Segunda Guerra Mundial, quando começou a procurar e a sinalizar arte produzida em hospitais psiquiátricos na suíça e em frança. Tendo fundado o coletivo Compagnie de l’art brut, cujo membro era André Breton, para além de inúmeros artistas, poetas e intelectuais, o seu projeto pode ser entendido como um movimento contracultural, em que tal como no surrealismo, ele e Breton estavam mais interessados no inconsciente do que na loucura, segundo o entendimento da Diretora Artística do CAO, Andreia Magalhães[3].

Coincidindo com o centenário do nascimento de Mário de Cesariny em 2023 e o da publicação do Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton em 2024, a proposta de Ana Anacleto no texto que acompanha a exposição, de que a noite é um «contexto particularmente rico para a edificação de uma revolução», reverbera as ideias utópicas surrealistas de liberdade, sonho, mistério, embriaguez, desejo, maravilhamento, magia e poesia.

A Revolução na Noite, inaugurada no âmbito da celebração dos 10 anos do Centro de Arte Oliva, estará patente até 12 de maio de 2024.

 

 

[1] Cesariny, M. (1997). A Intervenção Surrealista. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 9.

[2] Rolnik, S. (12 de março de 2022). Psicanalistas Que Falam. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=y0SDyvf71kc>.

[3] Leonorana. (27 de outubro de 2023). A Broader Field: Andreia Magalhães and Isabel Carvalho. Disponível em <https://ext.maat.pt/longforms/broader-field>.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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