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O Mundo, um Jardim Planetário: Eles falam em Arco-íris no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra

O arco-íris, do imaginário dos contos de fadas e das crianças. Aquilo que, na verdade, não passa de uma ilusão (de ótica), que nunca irrompe num ponto preciso do céu, mas nem por isso se diminui em magia e fortuna uma vez descoberto. Não espanta: desde sempre os mitos deram forma às coisas. No entanto, para lá da concretização de qualquer promessa ou desejo, a aparição desse arco multicolorido é real. Para isso basta que estejamos atentos, mais do que no sítio certo à hora certa. Depois, é observar a reflexão da luz solar em ângulos díspares que comportam cores diferentes, uma por cada comprimento de onda.

A Terra formou-se, e constantemente se transforma, à custa de tempo. Tal como o arco-íris que, reunidas certas condições, implica um intervalo específico para se desenvolver, de nós a natureza exige calma e reflexão para discernir a sua presença. No Círculo de Artes Plásticas em Coimbra (CAPC), a exposição Eles falam em Arco-Íris robora esta questão: se prontamente associamos à experiência no espaço expositivo uma eutimia meditada e consciente, eis a exacerbação da pausa. A vida frenética que nos demove da caminhada na floresta, do mergulho no rio e do abraço aos rochedos, recupera aqui uma boa “desculpa” para a trégua ao relógio, num compasso rumo à convivência com o meio ambiente. É inevitável, porém, admitir o que parece incongruente. Pela mão curatorial de Filipa Oliveira o natural veio de fora para dentro. Penetrou o edifício, ocupou-o, fez-se ver. Apodera-me a dúvida: “Por que razão precisamos que a galeria exiba aquilo que cruzámos para chegar até aqui? Aquilo que o Jardim da Sereia oferece diariamente?”. Nos caminhos seletivos do olhar contemporâneo parece tornar-se trivial, dado adquirido, a sua existência, facilmente se quebrando a ligação e a estima.

Na exposição, três artistas falam em arco-íris, o mesmo que dizer falam em muitas cores, para cativar a nossa atenção e contrariar estas invisibilidades. Gabriela Albergaria, Marcelo Moscheta e Margarida Lagarto apresentam um trabalho com tanta dissemelhança na metodologia, quanto sintonia na intenção: o diálogo com a natureza. Contudo, encetar esse diálogo hoje é referir, por certo, a ação humana. A nossa engenhosidade levou-nos excecionalmente longe, uma história escrita na superfície terrestre: o que outrora era selvagem foi domado ou perdido. Temos demasiado sucesso para o nosso próprio bem e do planeta, somos a causa e o caminho para a sexta grande extinção. E, no entanto, apesar desta previsão dramática, resta ainda a esperança de sermos a primeira espécie em 4 mil milhões de anos, a compreender o que se passa, consciente do que é necessário para corrigir e transformar. Os trabalhos de Albergaria, Moscheta e Lagarto materializam este grito premente que a Terra comunica de forma silenciosa. Embalados por uma postura poética, esta é uma crítica de incentivo ao realinhamento entre nós e os ecossistemas, ênfase à nossa capacidade de espanto, conexão e respeito pelo envolvente natural, capaz de sarar a nossa débil relação com o planeta.

Na primeira sala, várias pedras de xisto, alinhadas por Marcelo Moscheta, apresentam-se numa cadência normativa, tais como letras de um alfabeto, para depressa nos apercebermos que a linguagem que veiculam transgride a formalidade literal; pouco habituados que estamos à poética inata/dialeto do elemento natural. A mensagem que transportam carrega o peso da cronologia, a passagem do tempo histórico da ação humana, e geológico dos fenómenos naturais. Léxico Lítico é metáfora do poder da geologia na composição da paisagem, e do efeito do tempo na aliança entre o ido e o vindouro. Cada pedra uma arqueologia: as narrativas passadas e as infinitas possibilidades futuras. Hoje acumulação preciosa de minérios que desvendam a transmutação do lugar e das suas espécies – “ADN da paisagem”. A seu lado, Textileremediation #1 de Gabriela Albergaria numa alusão ecológica, politizada e interventiva. O gesto humano que se destaca, insinua que a nós cabe a consciência dos nossos feitos nocivos e a necessidade de cuidar e revigorar a paisagem. Recorrendo à antiga técnica portuguesa de cerzir e ao sashiko japonês, a artista funde vários trapos – os da arte e da mudança de paradigma – numa posição contra o desperdício e de estímulo à regeneração; ou não soubesse bem Albergaria que no ciclo completo da natureza podemos sempre recomeçar. A nova linguagem criada, materializada em peça remendada e desalinhada, reflete a aleatoriedade do natural e a conhecida ideia que a própria autora nos habituou: a natureza detesta linhas retas. O diálogo completa-se com Erva Seca de Margarida Lagarto, onde uma teia de ramos secos prolifera de um vaso. Este reservatório em rede acentua a forma adquirida pelos ramos, frisando a ideia de que nos solos terrestres se propagam vastos sistemas em rede de raízes de plantas e fungos, os quais permitem a comunicação, muito além do visível, entre os componentes do mundo vegetal.

Na segunda sala as paisagens desconstroem-se entre a observação, a afeção e o processo criativo. Nas três peças de Landscape in Repair, Gabriela Albergaria recria, através do desenho, a relação com a paisagem, partindo do jardim – como já nos familiarizou – para pensar sistemas de conhecimento e de poder. Neste caso, trata-se do Parque Nacional Californiano de Redwood, onde o percurso que outrora fez testemunha a capacidade regenerativa da natureza sem intervenção humana. E, desta forma, responde à finitude do mundo natural com a potência experimental e fecunda da arte. Manipulando o macro e o micro, a artista funde realidade e ficção para representar a grandiosidade de árvores centenárias, espelho dos processos históricos e atos humanos que as afetaram, deixando—nos ao final um trago de fascínio e temor. Enquanto a abordagem de Margarida Lagarto à forma como a natureza lida com a morte e a transformação, e o seu processo de cura, dá-se no bordado de uma tradescantia pallida purpurea. O gesto artístico revela-se muito delicado, ou não bastasse o detalhe meditado da execução. Aproximam-se a cura e o cuidado. Todavia, o significado da peça não se encerra aqui. A preservação desta espécie no tecido é um paradoxo se pensarmos no ciclo de vida perene desta planta. A perpetuação, por oposição à sua morte, reverbera em nós a questão: talvez sejamos nós o elemento fugaz.

Tradescantias pallidas purpureas continuam a preencher o espaço da terceira e última sala, numa tentativa da autora em reter a sua essência. A preservação insistente da espécie, seja pintada em aguarela, ou bordada em algodão, simboliza a atração e relação da artista com a natureza. Nesta extensiva catalogação de uma espécie só – que se deduz particularmente especial para Lagarto – o apelo agiganta-se: contemplemos o invisível, vivenciar a paisagem é fruir as suas complexidades e múltiplas expressões, mesmo as mais simples, quase impercetíveis. Sabemos que as plantas desempenham um papel crucial na manutenção de vida na Terra, mas frequentemente o olvidamos. Que seja este o grito gracioso e obstinado para a reconexão com o mundo natural. Por fim, as monotipias de Moscheta marcam a azul na parede um choupo negro e um sobreiro, trazendo muitas outras questões. Normalizamos a tentativa de reproduzir e documentar a diversidade dos biossistemas, e um exemplo disso é o papel químico usado neste processo laboratorial como veículo intermediário entre o original e a reprodução. Resultando em cada moldura um desenho de uma árvore, e em cada árvore, um espelho entre o original e o químico refletido, o positivo e o seu negativo; os quais, de facto, apenas refutam a possibilidade de copiar a natureza. Nenhum deles é, na verdade, o seu primitivo, o nativo não se reproduz por mão humana, ainda que pelo aparato se tente. Utopia. Lembremo-nos que esse fantasma-resíduo em transição entre as superfícies monotípicas, mais não é do que a imagem fátua e especular que se aprisiona na memória e no olhar a cada encontro com a paisagem; paralelo das projeções mentais que decorrem durante o sono REM (Rapid Eyes Movement). Termo este que dá título às obras e sabemos desempenhar um papel vital na consolidação da memória, no desenvolvimento cerebral e no sonho.

Superando qualquer convencionalismo artístico e evocando o espanto, sem, no entanto, evadir-se do real, esta exposição comove pela reverência à natureza; tanto objeto de criação, como tema das obras. Em cada intervenção, uma comunhão com os elementos trabalhados. Esquece-se o colonial, denuncia-se a subjugação. Eles Falam em Arco-Íris acorda-nos para a coexistência e pertença a um todo plural, encontrando na arte a oportunidade de abrandar o tempo e, desse modo, estabelecer uma relação com a paisagem de maneira mais intensa e bem direcionada.

Saímos, assim, eco do cidadão-jardineiro de Gilles Clément, aquele a quem cabe a construção de um espaço comum a todos os seres vivos – Jardim Planetário[1]território mental e paisagem ecologicamente equilibrada e socialmente útil, medula da qualidade ambiental e de vida no planeta, essencial para uma sociedade mais solidária, justa e feliz.

Eles Falam em Arco-Íris está patente no CAPC Sereia até dia 30 de dezembro.

 

[1] Adaptado do título da obra de Gilles Clément, Le Jardin Planetaire. Reconcilier l’homme et la naturecitação, (1999). ed. Albin Michel. Citado pela artista Gabriela Albergaria, no catálogo da exposição.

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

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