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Encontros Imediatos de Segundo Grau nas Galerias Municipais de Lisboa

Familiarizados ou não com os estudos das humanidades ambientais, frequentadores ou não dos espaços de cultura e pensamento da própria cidade, a verdade é que ninguém escapa aos discursos e às imagens em torno do fim do mundo, dos fins dos mundos. O apocalipse iminente vai, ao mesmo tempo, se infiltrando por debaixo da terra e fazendo sombra por de cima, num cenário de angústia algo concreto, algo profético. Mesmo àqueles que, convencidos de que esta não é uma preocupação legítima – ou, pelo menos, não para a sua geração –, assumem uma atitude resignada, há uma suspensão de valores qualquer que, inevitavelmente, toca a todos nós. Felizmente, criar a partir de lugares ou virtudes em ruína é prática antiga e constante neste planeta, seja por artistas humanos ou não-humanos.

Nesse caso, são representantes do primeiro grupo que expõem nas Galerias Municipais de Lisboa – Galeria Avenida da Índia. Com curadoria de João Francisco Reis, Encontros Imediatos de Segundo Grau procura tornar visíveis e palpáveis as moléculas de poluição, perigo e incerteza que co-inspiramos, ao passo que abre caminhos para a descoberta de outras resistências e existências. 56 obras de 12 jovens criadores compõem este cenário vibrante, frágil e trêmulo de possibilidades que se desenha no contacto entre um universo de ecossistemas naturoculturais[1] a desaparecer e outro a surgir. No caso da mostra, a metáfora refere-se à catalogação científica de Objetos Voadores Não Identificados, organizada pelo astrónomo estado-unidense J. Allen Hynek: num encontro de Segundo Grau, o avistamento de OVNIs já deixa efeitos ou vestígios concretos no território. As interações, aqui, podem ser de ordem interplanetária ou intergaláctica; mas podem, também, aludir à colisão de linguagens, culturas e cosmologias distintas[2] dentro de um mesmo globo, país, cidade, galeria de arte, ou, porque não, um mesmo corpo.

Neste espaço onde as fronteiras são feitas e desfeitas, onde estão deslocadas, expostas e atravessadas, as peças – ou as artianis, autóctones do reino de Arteânia, segundo a folha de salas para criança – parecem servir como portais entre-mundos, rastos de um acontecimento passado ou futuro que produziu, e continua a produzir, ecos em todas as partes envolvidas: o artista, a matéria, o visitante, o oculto. Enquanto uma espécie de amuleto alienígena, cada obra nos inspira a vislumbrar aquilo de mais infamiliar[3] e alheio no contexto que enquadra, advertindo-nos contra a ilusão da unidade, da linearidade, da solidez.

Logo à entrada, cinco criações recentes de Rita Paisana escavam terras estrangeiras, da onde se extraem silicone e outras substâncias minerais, oleosas e brilhantes. Deste outro mundo, a artista traz-nos pedaços inteiros da sua superfície, e os seus estratos geo e biológicos chegam até Belém com organismos nos seus últimos fôlegos. Camadas densas de tinta e vida, cujos relevos transparecem as marcas e fissuras de peles e movimentos vários – reconhecemos, até, algo que se parece com as impressões e o trabalho de mãos humanas –, conservam um sangue cintilante, fluido e quente, ainda a derramar-se para dentro e fora do quadro-escultura. Diante d’A gruta de Clarice ou de Go-Go Dancer, ambas artianis nascidas em 2023, ficamos com o momento breve e arrebatador do sopro vigoroso antes do derradeiro, de uma dança eufórica antes do silêncio total.

Também de terras estrangeiras vem Progressiva (2021), de Maryam Shimizu, que nos rouba a atenção no centro da galeria. No entanto, se as obras de Rita Paisana parecem-nos recém-chegadas, frescas do contacto com um outro mundo, a artista brasileira parece já há muito ter deixado o lugar ou tempo distante com o qual se confrontou. Aqui, o esforço é justamente aquele de tentar refazer um encontro longínquo, remendar uma lembrança fragmentada e quebradiça. Através do gesto obsessivo e algo melancólico da costura, incontáveis compressas tomam a forma de um vestido, ou de um corpo fantasmagórico, como se o ato de recriar e reparar pudesse, por si só, ser curativo. Nesse sentido, Maryam lembra-nos da polissemia do verbo curar, que, para além da convencional associação à erradicação da doença e dos males, remonta, também, ao tratamento demorado que se dá à madeira, ao queijo ou ao concreto. Somos, então, lançados a este tempo de maturação da procura – que se prolonga até que encontre o seu destino ou desista de procurar –, materializado numa peça que se mantém, sempre, em potencial construção (como a memória, o corpo, a casa). Banhado em látex, o vestido de retalhos torna-se mais resistente e ganha a silhueta de um esqueleto – de repente, um corpo humano já não mais cabe na sua estrutura, já não sustenta o seu peso.

Mas seguimos, ainda que enfraquecida e imperfeitamente. Como expresso no início deste ensaio, a perseverança e a teimosia são das características mais incontestáveis entre os seres vivos e não-vivos que conhecemos. É por isso que a arteani de Diogo Luz Pereirinha, uma rocha colorida de núcleo plástico, pode pleitear asas (Eu quero asas, 2023); um barquinho de papel pode navegar por entre águas felpudas (E se?, Mafalda Riobom e Mayram Shimizu, 2023); e pequenas fortalezas podem surgir – e ressurgir – em territórios arenosos e instáveis (A Gift, 2023, Maria Máximo e Ida Mariboe). Quando o fim do mundo chegar (finalmente) ao fim, já terá sido o começo de um novo mundo qualquer. É verdade: Carlota Bóia Neto, Diogo Luz Pereirinha, Gabriel Ribeiro, Madalena Anjos, Mafalda Riobom, Manuel Ferreira, Maria Máximo, Maryam Shimizu, Pedro o Novo, Pedro Barassi, Pedro Tinôco e Rita Paisana já o avistaram.

Encontros Imediatos de Segundo Grau está patente nas Galerias Municipais de Lisboa – Galeria Avenida da Índia até 10 de dezembro de 2023.

 

[1] Em referência ao termo como utilizado por Donna J. Haraway em O Manifesto das Espécies Companheiras (2003) – “natureculture” –, sem espaçamento ou hífen entre as palavras, enfatizando a síntese e a inseparabilidade de ambos os conceitos nas relações ecológicas e materiais, constituídas, na mesma medida, por dimensões biofísicas e socialmente formadas.

[2] Penso, aqui, no conceito de “zona de contacto”, expressão cunhada em 1991 pela crítica literária Mary Louise Pratt, numa conferência intitulada Arts of the Contact Zone. A intelectual, por sua vez, deglutiu o conceito de “linguagem de contacto”, proveniente do campo da linguística, que se refere à língua improvisada que nasce do encontro entre falantes de dois ou mais idiomas distintos. A particularidade desta ideia, em Pratt – destacada também por Haraway –, é a sua atenção à desigualdade e à assimetria das relações que frequentemente dão forma a este novo espaço social, como no caso dos “choques” entre culturas abertos pelo colonialismo ou pelo tráfico de pessoas escravizadas.

[3] Usual tradução brasileira para o conceito de Das unheimliche, mobilizado por Sigmund Freud no seu ensaio homónimo, datado de 1919.

Laila Algaves Nuñez (Rio de Janeiro, 1997) é investigadora independente, escritora e gestora de projetos em comunicação cultural, interessada particularmente pelos estudos de futuro desenvolvidos na filosofia e nas artes, bem como pelas contribuições transfeministas para a imaginação e o pensamento social e ecológico. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema (PUC-Rio) e mestre em Estética e Estudos Artísticos (NOVA FCSH), colabora profissionalmente com iniciativas e instituições nacionais e internacionais, como a BoCA - Biennial of Contemporary Arts, o Futurama - Ecossistema Cultural e Artístico do Baixo Alentejo e, enquanto assistente de produção e criação de Rita Natálio, a Terra Batida.

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